A subjetividade ou a narrativa em primeira pessoa é bastante comum na literatura, no cinema e nos quadrinhos. “Comum” não implica em dizer que é fácil de se produzir, principalmente quando o seu “personagem” é um objeto inanimado, que não pensa, não se locomove e não emite uma opinião sequer. Somada a essas características de ausência, a história contada são recortes ao longo de quase um século.
Qual o custo de uma guerra mundial? Não só o lado econômico, político e social, como também a perspectiva artística — com tantas obras destruídas e saqueadas, artistas mortos nas trincheiras e nos combates (tão jovens que nem sabiam que seguiriam o ofício) e inspirações que poderiam brotar tanto de um modelo vivo quanto de um morto (ou que apodreceu por dentro do que testemunhou).
Com um subtítulo autoexplicativo, chegou ao Brasil a grande obra vencedora do prestigiado Fauve d’or 2025, do Festival de Quadrinhos de Angoulême, na França: Duas Moças Nuas — A História de um Quadro (Conrad, 192 páginas).
O ponto de partida é o fim da Primeira Guerra Mundial, 1919, com o artista Otto Mueller (1874–1930) — um dos mais importantes expressionistas alemães — pintando o que viria a ser a obra Duas Moças Nuas, a testemunha ocular de toda a narrativa, que vai até a virada do milênio.
Com o quadro em branco, como tudo começa, vemos as pinceladas de Mueller dando forma, mas por dentro, como se o leitor recebesse as tintas no seu campo de visão. Tudo isso em um diálogo hipotético (afinal, é uma docuficção) numa floresta nos arredores de Berlim, entre o autor e a sua esposa (e musa), Maria “Maschka” Meyerhofer, que serviu de modelo para as moças. A partir do seu “nascimento”, todos os quadrinhos da obra serão a perspectiva do quadro, sem exceções.
Por conta dessa subjetividade, somos carregados, colocados em pé, deitados, pendurados, caímos pelos estrondos das explosões da próxima guerra, somos embalados, apreciados, escanteados, ignorados, ojerizados e levados de um lado para o outro, sempre “vigilantes”.
Do ateliê, acompanhamos parte da vida de seu autor até parar na parede de um advogado judeu. Aqui, vemos da janela de seu escritório a ascensão nazista em cenas de segundo plano, como um rabino sendo hostilizado e passeatas em prol do Terceiro Reich.
O mais impressionante vem em seguida, com o acervo confiscado do povo judeu sendo catalogado para adornar uma exposição de “arte degenerada”, em Munique, promovida pelo próprio regime nazista. É “pornográfico”, mas todos querem ver, eis a contradição. Quando a obra é exposta num determinado leilão, a sensação é que somos nós, leitores e leitoras, que estamos despidos com um público de olhares de inquisição. Fora isso, vez por outra, vemos a chaminé de longe expelir a fumaça e as cinzas de obras que foram destruídas.
Com as mudanças constantes de lugar, é impossível não pensar nos ciganos, que são tradicionalmente associados ao nomadismo (apesar de essa característica não definir todas as comunidades atualmente). Principalmente porque Otto Mueller era fascinado pelo modo de vida desse povo, sendo referido como o “pintor dos ciganos”. Por conta da itinerância, podemos apreciar também as obras “vizinhas”, penduradas à frente do quadro, como Warhol, Blake e Klein.
Por fim, vale lembrar que tanto o seu autor, Luz (pseudônimo de Rénald Luzier), quanto o seu personagem, Duas Moças Nuas, são sobreviventes: o quadrinista francês acordou atrasado para ir à redação da revista Charlie Hebdo, em Paris, quando houve o massacre em 7 de janeiro de 2015, por extremistas islâmicos.
“Uma pintura é a soma das emoções que a criaram e nutriram ao longo dos anos. Essa pintura é uma sobrevivente. E eu também sou. Todos somos uma espécie de pintura, mas permanecemos uma página em branco escurecida pelos perigos da vida”, chegou a declarar Luz.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 10 de dezembro de 2025.
