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Resenha

Já se foi o tempo das igrejas

publicado: 26/06/2024 09h19, última modificação: 26/06/2024 09h19
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Ezequiel Rodríguez encarna um dos irmãos que tentam “abortar” a vinda de um demônio no terror argentino “O Mal que nos Habita” | Foto: Divulgação/Netflix

por Audaci Junior*

Quando se invoca — ou se encarna  — algum demônio, a pessoa possuída precisa do básico: a bênção do Vaticano, cruz, água benta e um padre com o manual de exorcismo a tiracolo (sim, existe realmente tal publicação). Desde a popularização do ritual nos cinemas, com O Exorcista (1973), obra-prima dirigida por William Friedkin e escrita por William Peter Blatty (baseada no livro homônimo de sua autoria), o gênero do terror nunca mais se desvencilhou do capeta dos clichês regados a vômitos verdes, masturbação com o crucifixo e viradas de cabeça que dão inveja ao Chucky, o brinquedo assassino.

O ápice das traquinagens produzidas pelos Tranca-Ruas hollywoodianos se deu com o lançamento de O Exorcista — O Devoto (2023), uma tentativa milionária de “reinventar” a roda da fortuna, que acabou sendo um fracasso por conta da falta de fé da crítica e público. Ainda mais quando o diretor David Gordon Green (especialista em exorcizar sucessos de seus filmes) invocou uma espécie de “Liga da Justiça” ecumênica para tirar os demos de duas garotinhas “que aprontaram grandes confusões”.

Dito todo esse preâmbulo, chegamos em um terror que foi produzido aqui do lado, na Argentina: O Mal que nos Habita (Cuando Acecha la Maldad, 2023), que estreou recentemente no catálogo da Netflix. O longa-metragem dirigido por Demián Rugna (de Aterrorizados e vários outros filmes do gênero) é uma lufada de originalidade nesse deserto onde se encontra apenas o Pazuzu ou genéricos do clássico dos anos 1970, além de celulares ou jogos possuídos (sim, os demônios brincam em serviço).

Em um bucólico vilarejo do interior, dois irmãos encontram um corpo mutilado perto de sua propriedade e se reúnem com moradores locais para investigarem o ocorrido. Na vizinha, eles acabam descobrindo um homem que está “infectado”, prestes a dar a luz a um demônio de carne e osso.

Nesse “universo” construído pelo cineasta Demián Rugna, além de não ter o Ricardo Darín como protagonista, também não há igrejas, que se tornaram irrelevantes perante o niilismo que as possessões demoníacas e afins instauraram, mesmo para uma religiosidade tão enraizada na América Latina.

Com uma narrativa envolvente, cruel, violenta (cheia de efeitos práticos) e pessimista, a produção argentina não é à prova de falhas, assim como muitas do gênero, mas conduz muito bem alguns quesitos pouco explorados (como no caso de dar ambiguidade a um personagem autista de estar ou não possuído).

Um filme bem acima da régua do que vem sendo regurgitado pela fábrica de clichês de Hollywood hoje. Tanto que O Mal que nos Habita nem precisa de Nietzsche no seu universo para afirmar que “Deus está morto”, de fato.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 26 de junho de 2024.