Na capa (dupla), uma criança corre feliz em um campo de papoulas, vestida como se fosse uma fantasia de joaninha. De perto, um casal sentado, acompanhando o ziguezaguear despreocupado da criança com o olhar. Aparentemente, ela está mais feliz que ele.
Esse é o primeiro contato com O Combate Cotidiano (Pipoca e Nanquim, 252 páginas). Quem trava o bom combate da vida? Marco, o protagonista pensativo da capa, fazia isso registrando conflitos. Se arriscando armado apenas com a sua câmera, mirando e registrando para o perigo. Ele sai do campo minado e vai para casa de um campo cheio de papoulas. A paz no período sabático da sua vida vem com todos os conflitos cotidianos que ele espera (ou não) travar.
O trabalho do quadrinista francês Manu Larcenet (o mesmo do ótimo O Relatório de Brodeck) arrebatou o prêmio de Melhor Álbum no Festival de Angoulême de 2004, na França, e foi adaptado para o cinema, em 2015.
Com um traço mais leve (e colorido), bem menos pesado que o nanquim marcado do preto e branco do Brodeck, Larcenet pacientemente – um dia após o outro com uma noite se intrometendo no meio – vai apresentando ao leitor uma reflexão sobre temas como autoaceitação, amadurecimento e o que o dia a dia sensibiliza ao longo das introspecções e ansiedades.
Assim como visto em O Relatório de Brodeck, é interessante como o autor não abandona a guerra, mesmo sem mostrá-la: é o vizinho armado e territorialista, é o outro vizinho simpático com ares de sabedoria e um passado minado, o combate descomunal de reter navios na memória, traumas travados no divã, é a inquietação de um combate que está sendo (realmente) feito por engravatados (senhores da guerra na queda de braço da política) decidindo vidas de peões de um velho estaleiro no qual seu pai vai apagando com a borracha do Alzheimer… até Hitler aparece encarnado em um felino.
Uma bela e sensível construção de personagem, com vários momentos nos quais a leitura estaciona para tentar entendê-lo (ou não para, pois entende o protagonista até demais). Pena que Larcenet termina se esquecendo de um personagem, que sai de cena e não volta no último ato, nem mesmo é mencionado. Não falo de conclusões, porque o combate é cotidiano, porém seria o mínimo sabermos em que trincheira ele estaria, não numa “terra de ninguém”, ainda mais pela aproximação dos soldados no campo de batalha da vida. Porém, um dos únicos “senões” da obra nos faz parar para pensar onde se meteu aquela pessoa que fez parte do elenco principal da nossa vida, mas nem o dublê aparece para fazer cena hoje em dia.
Talvez, na última parte, o leitor brasileiro menos antenado possa se perder um pouco sobre alguns monólogos políticos que devem ser exorcizados por Larcenet. Porém, podemos até projetar no nosso passado recente de mudanças e conflitos políticos para entender melhor o palanque etílico proporcionado pelo quadrinista.
Fora o animal político que nós temos que domar todos os dias, o gibi é sobre outras guerras também. A guerra contra os relatórios maternos sobre seu comportamento no front; a guerra psicológica travada com “soldados abatidos” do seu lado; a guerra entre o passado e o futuro no presente; a guerra travada todo santo dia. Mesmo que você não saiba e um velho retrato o faça lembrar isso: de quem você é. Do que seu tataravô passou para o seu bisavô, que passou para o seu avô, que por sua vez passou para o seu pai, que finalmente passou para você e que está passando para além desse campo de batalha... que é, simplesmente, a vida.
*Resenha publicada originalmente na edição impressa do dia 17 de março de 2024.