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Resenha

O melhor do ano, de cabo a rabo

publicado: 09/07/2025 08h27, última modificação: 09/07/2025 08h27
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Capa da HQ “Ouroboros”, de Luckas Iohanathan | Imagens: Divulgação/Comix Zone

por Audaci Junior*

Luckas Iohanathan. Guarde bem esse nome. Na verdade, nem deu para falar isso, já que, em pouco tempo — uma piscadela de olhos do Cronos —, o quadrinista já conseguiu chamar a atenção com poucas obras.

Tudo nasceu no digital, uma vez que foi esnobado por editoras (apenas uma respondeu, antes de chegar a pandemia). Em 2020, O Monstro Debaixo da Minha Cama — uma história sobre abusos e omissões protagonizada por uma solitária garotinha — foi lançada no mundo virtual, sendo indicada ao Troféu HQMix, nas categorias Publicação Independente de Edição Única e Novo Talento Roteirista. Posteriormente, em 2023, ganhou uma versão física pela editora Pipoca e Nanquim, por ter conquistado a 2ª edição do Prêmio Geek de Literatura, na categoria Quadrinhos.

Depois veio Enterrei Todos no Meu Quintal (2021), lançada apenas no formato digital e vencedora do Prêmio Geek de Literatura. Uma história sobre descobertas, erros, amadurecimento, solidão e morte — guarde bem essas palavras —, desde a infância até a velhice da personagem. A editora Comix Zone promete lançar essa HQ em formato físico, ainda neste ano.

Por fim, veio sua consagração: Como Pedra (Comix Zone) arrebatou o Prêmio Jabuti, no ano passado, colocando o nome desse norte-rio-grandense de Mossoró em evidência, no alto dos seus 30 anos. Antes, a obra tinha recebido uma menção honrosa no Prêmio Latino-Americano de Quadrinhos, em 2022.

O que poderia ser “o melhor trabalho de Luckas Iohanathan” esbarra na dimensão de quem já conhece a diversidade de histórias sobre a luta contra a seca, messianismos e as adversidades do Sertão nordestino. Não me leve a mal: há uma técnica bem acima da média, bons diálogos e personagens interessantes (vide a mulher, dona de uma maternidade resiliente), mas em um tom que já encontramos por aí, quase como um déjà-vu, mesmo sendo “uma perspectiva de aceitação e superação diante do sofrimento”, como o autor chegou a dizer, em uma entrevista ao site O Quadro e o Risco.

Engana-se quem achou que esse começo seria seu auge. Recentemente, foi lançado Ouroboros (também pela Comix Zone). E digo, sem pestanejar: é a melhor história em quadrinhos do ano, mesmo estando em julho. Iohanathan se superou de novo, em uma trama que envolve… descobertas, erros, amadurecimento, solidão e morte. 

Cena silenciosa da HQ “Ouroboros”, de Luckas Iohanathan

Para quem não associou o nome à mitologia, “Ouroboros” é um símbolo milenar que representa uma serpente (ou um dragão) que devora a própria cauda, formando um círculo. É a natureza cíclica da vida, a morte e o renascimento, a eternidade e a unidade de todas as coisas.

Desta vez, o protagonista é um homem, Kesler, policial de uma metrópole. Após visitar o lixão da cidade, ele parte para o interior, para visitar a sua mãe e todos os fantasmas que habitam a região. Falar mais a partir daqui é privar o leitor e a leitora do prazer de ler (e reler) Ouroboros. Sim, da mesma forma que a serpente devora a cauda, a última página é “engolida” pela primeira, em um rápido folhear para trás, ligeiro como um reflexo.

Não estranhe se há um “milagre” em um momento-chave da história. É a cartada de realismo fantástico que Luckas Iohanathan põe na mesa.

Aqui, os diálogos são tão naturais e “honestos” quanto o vitimismo ou a defesa dos personagens. Tudo engolido com café coado na hora e um bolo de cenoura ruim (que dá para comer).

Em nenhum momento, o autor julga as suas criações. Em nenhum momento, o “protagonismo” é sinônimo de bondade. O que há é muita humanidade, por bem ou por mal.

Preste atenção nas rimas visuais, nas tonalidades temporais das cores, nos silêncios, nos ecos do passado em preto e branco, nos insights e nas transições. Um bom exemplo é quando Kesler viaja do centro urbano para o interior, deixando o caos do trânsito até testemunhar o mundo desapertado com uma construção aqui e outra ali.

Por fim, depois de ler e reler, prestando atenção aos detalhes e às nuances da narrativa, poderá atestar: é a melhor obra de Luckas Iohanathan… até vir a próxima para devorar essa nova “cauda”.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 9 de julho de 2025.