No teatro tradicional, o palco é um universo onde orbitam os personagens, que giram em torno dos efeitos das suas próprias tragédias e comédias. Um dos grandes nomes da dramaturgia mundial, o autor inglês William Shakespeare (1564-1616) coleciona diversos clássicos que são adaptados ao longo dos séculos por vários meios de comunicação, desde outras peças teatrais, passando pelos filmes até as histórias em quadrinhos.
É unindo o melhor dos dois mundo que o italiano Gianni De Luca (1927-1991) apresentou uma das suas maiores contribuições para os quadrinhos. “Se alguém se limitasse apenas a conservar ou apenas a revolucionar, não avançaria mais que um palmo”, chegou a declarar o quadrinista.
Com roteiros adaptados por Raoul Traverso (ou Sigma), De Luca apresenta grandes clássicos do “bardo inglês” em Trilogia Shakespeariana (Figura Editora, 144 páginas), mas por meio de uma narrativa visual única, que teve no seu nome o batismo para tal técnica.
Nos quadrinhos, o leitor e leitora devem “preencher” os espaços entre um quadro e outro, promovendo na sua “leitura visual” todo o processo de uma ou mais ações que se destacam na narrativa. No “Efeito De Luca”, ele “derruba” esses quadros e coloca a ação em apenas um cenário, como em um palco de teatro, gerando nele um rastro residual dos personagens, um atrás do outro. Algo bem parecido no universo da fotografia, quando o autor deixa um tempo maior da abertura do obturador da máquina, dando o efeito de “cavalgadura” em um registro de algum objeto ou pessoa em movimento.
Criada nos anos de 1970 para a revista Il Giornalino, a Trilogia Shakespeariana mostra um perceptível avanço dessa técnica conforme Gianni De Luca vai apresentando as suas adaptações de A Tempestade, Hamlet e Romeu e Julieta (principalmente nessas duas últimas).
A técnica empregada pelo italiano vai além de meras sequências de imagens, destinadas a narrar momentos sucessivos de uma ação em um único espaço. De Luca ignora a linearidade do que seria a leitura na página, “brinca” com o tempo e com a geografia do seu “palco” (seja em estrutura arquitetônicas, relevo ou pontos de fuga), coloca a narrativa em diversos ângulos e perspectivas, algo que não se veria em uma peça tradicional, e — o mais importante — deixa tudo coerente visual e narrativamente ao longo da sua leitura.
A Trilogia Shakespeariana é um grande exemplo de como os quadrinhos extrapolam as suas próprias páginas.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 12 de junho de 2024.