Notícias

Resenha

Pelos dilacerados retalhos de memórias bordadas

publicado: 12/11/2025 08h44, última modificação: 12/11/2025 08h44
o-corpo-de-cristo-3.jpg

Cada um dos quadrinhos é um bordado feito à mão pela autora e reproduzido nas páginas do álbum | Imagens: Divulgação/Comix Zone

por Audaci Junior*

No catolicismo, o Corpus Christi celebra a presença do filho de Deus na Eucaristia — o pão e vinho consagrados. Independentemente da crença, a religiosidade na vida das pessoas pode trazer tanto benefícios quanto malefícios.

Mais uma vez temos nas prateleiras de quadrinhos uma biografia. Alguém pode torcer o nariz para essa temática, mas, vez por outra, aparecem obras pertinentes como o premiadíssimo O Corpo de Cristo (Comix Zone, 176 páginas), da Bea Lema. Basicamente, é a história do relacionamento entre mãe e filha. O que sobressai de cara é a forma como ela foi produzida: cada um dos quadrinhos é um bordado feito à mão pela autora e reproduzido nas páginas do álbum.

Uma técnica têxtil inspirada nas antigas e populares arpilleras chilenas, confeccionadas como fonte de sobrevivência das bordadeiras oriundas da Isla Negra, no litoral desse país sul-americano, que tem como matéria-prima retalhos e sobras de tecidos bordados, tornando um meio de expressão e resistência tanto político quanto cultural. Surgiram durante a ditadura militar chilena (1973–1990) como uma forma de denunciar as violações de direitos humanos e a busca por desaparecidos políticos pelas artistas marginalizadas e periféricas. 

Obra traz temas complexos, como saúde mental e religiosidade

É uma beleza rústica que parece familiar, pois lembra muito o artesanato do Nordeste brasileiro, com as rendas de bilro, a renascença e até mesmo as xilogravuras da literatura de cordel. São tecidos e costuras que são unidos por memórias.

Além do relacionamento familiar, a obra aborda temas complexos, como a saúde mental e a religiosidade, tudo a partir da experiência da própria autora, que nasceu na Coruña, Espanha. Sua mãe era testemunha de uma figura demoníaca que invadia a sua residência e também se apossava de seu corpo, fazendo com que ela ficasse prostrada na cama por dias a fio. Quando esse mesmo ser maligno adormecia, era preciso fazer silêncio absoluto para não acordá-lo.

Para o pai, a história de demônio parecia apenas uma superstição ultrapassada. Isso tudo presenciado por uma criança, que vivia fraca e cansada. Ela também ia para sessões de exorcismo com curandeiras, após a mãe desacreditar nos diagnósticos de vários médicos, quase como uma tradição familiar.

Por falar nisso, o “corpo” bordado da obra é uma herança que a quadrinista alinhavou pelo encanto que tinha vendo a mãe costurar para vizinhas e conhecidas. Pelo cenário de uma Espanha patriarcal, pobre e católica, a pequena autora também formava seu altar particular, entre idas e vindas da igreja e da loja de brinquedos. Eram santos “pôneis” e santas “sereias” exaltados pelas promessas de engolir o remédio da curandeira.

Outras costuras que acompanhamos são as origens maternas e o sacrifício de uma já crescida protagonista, que abdica da sua vida independente para cuidar do transtorno delirante que provoca as ideias obsessivas da mãe com demônios e a morte.

Bea Lema fez de O Corpo de Cristo a sua própria Tapeçaria de Bayeux, uma ode de amor de uma filha à sua mãe.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 12 de novembro de 2025.