Assim como o escritor Ernest Hemingway (1899–1961), o cantor e compositor Dorival Caymmi (1914–2008) sabia muito bem sobre a sedução do mar. Tanto que uma passagem de um dos solitários livros do norte-americano serve de epígrafe para Mais uma História para o Velho Smith (Gambatte, 128 páginas), de Orlandeli.
Um dos finalistas do Prêmio Jabuti deste ano, na categoria de histórias em quadrinhos, a obra ganha um peso importante por tratar de temas como a velhice, a identidade, a solidão e as memórias, principalmente quando elas escapam, como o cachalote branco escapole do capitão Ahab ou a resistência que o peixe descomunal tem das artimanhas pesqueiras de Santiago.
O protagonista da história de Orlandeli é um contador de histórias que as retira de suas aventuras marítimas. Mais do que histórias de pescador, Smith tem a ânsia de transmiti-las para quem quer que seja o seu público, de crianças a adultos. Reviver pelas narrativas é uma satisfação tão grande quanto ter testemunhado as mesmas.
Contudo, o personagem começa a ficar desnorteado, sem saber onde fica a popa ou a proa, quando tenta puxar o fio da memória de uma das suas infinitas narrativas, mas ela escapa partindo a linha. Isso se repete como o balanço do mar, até perceber que ele foi fisgado pela doença de Alzheimer.
Sem poder ancorar o seu talento raro de alquimista — transmutando memórias em narrativas —, acompanhamos, inicialmente, o bom e o velho Smith singrando por águas calmas, cuja única preocupação é deixar o convés limpo e observar pela luneta o horizonte imutável.
Apesar do protagonista ter perdido o leme para as narrativas, felizmente, com o autor da obra não há esse problema: Orlandeli cruza pelas páginas com a habilidade de um cartógrafo marítimo, oferecendo as reviravoltas esquecidas por Smith, em uma jornada cheia de alegorias que vão aportar perfeitamente no fim da viagem.
Para se ter uma noção, até Edgar Allan Poe (1809–1849) é lembrado por aqui. Velho marujo de histórias sensíveis e com um estilo artístico marcante (vide a trilogia do Chico Bento nos álbuns da Graphic MSP e uma verdadeira frota de quadrinhos independentes, como A Coisa e Daruma), Orlandeli possui um grande domínio de narrativa como um astrolábio, colocando camadas não só nas alegorias apresentadas, como também nos “silêncios” enquadrados pelas composições e “viradas de páginas”.
Com uma predominância de tons esverdeados, o elegante traço e a técnica empregada no casco de Mais uma História para o Velho Smith fazem com que haja um diálogo entre a narrativa visual e a narrativa do esquecimento, a quilha da obra. “Optei em usar pinceladas grossas e soltas para fazer a cor. A ideia é essa falta de uniformidade criar uma sensação de algo mais vivo, em movimento e, ao mesmo tempo, em construção”, disse o quadrinista em um dos textos na seção de extras.
Edição independente contemplada pelo edital ProacSP, a obra é uma das HQs do Orlandeli que seduz como os cantos das sereias e será marcada nas nossas cabeças como as tatuagens nas peles dos marinheiros quando chegam em um porto seguro.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 15 de Outubro de 2025.