Chegando de uma estressante viagem, entre dar uma passada rápida no supermercado porque a geladeira está vazia e lavar as pilhas “condenadas” de louça suja que acumulou antes do passeio, você prefere encarar a pia da cozinha. A outra pessoa que ficou com as compras demora a voltar. Quanto mais se estica a saída que não gastaria nem uma horinha, mais pensamentos intrusivos começam a habitar sua mente. O que aconteceu? Será que ela está bem?
Essa é a estrutura de Resta Um (HQueria, 310 páginas), primeira história em quadrinhos do norte-americano Jordan Crane a ser publicada no Brasil. A obra é um resultado de duas décadas de produção.
Com uma grade majoritária de seis quadros por página, o autor independente apresenta um jovem casal — Connie e Will —, que se depara com diversos sentimentos, como a perda, o medo, a tristeza e o amor. Para seu experimentalismo, Crane utiliza flashbacks, projeções e até uma “ficção” paralela dentro da própria história. O que difere da “verdadeira” linha cronológica é o requadro (a “moldura” dos quadros), que são onduladas quando muda a narrativa para um dos três segmentos.
Ele fica com a louça e ela vai às compras, com direito de escolher um filme na locadora (sim, apesar da HQ não se situar, é na época pré-streaming). Antes, no clima tenso do carro por conta do trânsito, Connie estava lendo um livro, que é a história paralela. No enredo desse romance, mais um casal e uma tragédia: eles acabam de perder o filho, natimorto. O luto, a fuga, a vitimização, a culpa e a dor são personagens que também assombram o “mundo real”, pois Will (que também está lendo a obra) começa a imaginar o pior pelo atraso de sua companheira.
Em ambas as linhas narrativas, os personagens abrem o leque de projeções do vazio dos que foram. Essa ausência é representada pela forma pontilhada no espaço, que seria ocupado pelo indivíduo naquele momento. Por exemplo, no romance, quando o marido afugenta-se no trabalho, a esposa está prostrada na cama, com o “fantasma” do bebê.
Essas projeções também chegam até o leitor: Quando será a última vez que verá uma determinada pessoa na sua vida? Isso pode fazer os seus pensamentos girarem em um carrossel de conjecturas de como será o “daqui para frente”, com a ausência constantemente presente de uma pessoa próxima ou de um ente querido, ou ainda de um ser humano que morreu antes mesmo de ter nascido.
Com uma arte cartunesca e usando uma paleta de cores em diversas tonalidades de verde (que pode representar tanto desequilíbrio quanto renovação), Jordan Crane faz uma reflexão sobre o que é viver (ou seria conviver?) com as possibilidades e com o concreto, mesmo abrindo os quadros do desfecho para um lado mais abstrato.
Múltiplas leituras reservam a Resta Um — título escolhido pela tradução nacional que faz uma analogia ao famoso jogo “solitário” de quebra--cabeça. Já o original, Keeping Two, faz uma referência direta a uma teoria de um dos protagonistas na história sobre uma regra de três. Apesar de não ser a melhor escolha, o título brasileiro até se casa com a proposta no sentido da projeção, mas não da sua essência em si, visto pelo final do enredo.
Porém, é um detalhe que não tira o brilho dessa obra transcendental.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 3 de setembro de 2025.