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Quando o Eldorado encontra o movimento Armorial

publicado: 29/11/2023 11h18, última modificação: 29/11/2023 11h18
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Premiada HQ acompanha um bufão em jornada tragicômica digna de um ‘Dom Quixote de la Mancha’ - Imagem: Nemo/Divulgação

por Audaci Junior*

De forma geral, um trabalho com viés histórico aponta a proa da embarcação para o Norte do dramático e do épico. Contra tal correnteza, o mapeamento traçado pelo premiado álbum Nas Índias Traiçoeiras (Nemo, 160 páginas, R$ 194,80) parte do “descobrimento” de uma fuga desses gêneros para entoar um quê cordelístico tragicômico, como se o próprio Ariano Suassuna e o movimento Armorial surgissem em pleno século 15.

A temática da história em quadrinhos é aquela surrada da busca da riqueza através da “descoberta” Eldorado nas chamadas “Índias Ocidentais” – nome pelo qual era conhecido o continente americano –, como garimpeiros da nossa Serra Pelada, séculos mais tarde. Acompanhamos a jornada nada épica de um burlão pelo texto dinâmico do francês Alain Ayroles e no belo traço do espanhol Juanjo Guarnido (coautor da série noir e felina Blacksad), que explora tanto o barroco quanto o realismo de maneira descomunal, principalmente nas vestimentas cheias de detalhes e na natureza com cores fortes.

Porém, como “malandro é malandro, mané é mané”, não importa se vem do Velho Mundo ou nasceu bem aqui, na América do Sul. Independente dos atos nada éticos, é impossível não se render à simpatia de Don Pablos de Segóvia, personagem que narra suas aventuras picarescas na América durante a Era de Ouro.

Apesar da minha referência nordestina do Armorial no começo, é lógico que a HQ se aproxima mais da sua fonte: nitidamente, temos como base o Cervantes e seu bastião que combate moinhos. O protagonista desse gibi é filho dessas entranhas, que se nutriu no farto seio literário, vindo de uma “gente esperta” que precisa – a qualquer custo – “não morrer”, por mais engraçado e desgraçado que isso valha (uma selva desbravada de risos e lágrimas). Ainda mais quando a obra apresenta algumas sequências bem tristes, dando lógica ao equilíbrio do tragicômico.

A melhor das especiarias dessa narrativa é como ele faz uma receita recontando ou acrescentando ingredientes para a massa não desandar. Dando uma volta pelo globo, evoco o clássico nipônico Rashomon (1950), filme dirigido por Akira Kurosawa, no qual há várias versões de uma mesma história. Não é à toa que o outro título de Nas Índias Traiçoeiras é: Uma segunda parte de A história de vida de Buscón, chamado Don Pablos de Segóvia, vagabundo exemplar e espelho dos malandros; inspirada na primeira, como narrou em seu tempo Don Francisco Gomez de Quevedo y Villegas, cavaleiro da ordem de Santiago e senhor de Juan Abad. Alguém se lembrou do nome completo de Dom Pedro I ou do seu filho?

Assim como a busca pelo Eldorado, a edição da Nemo está à altura, com capa dura, formato gigante (25 cm x 33 cm), papel couché, detalhes ornados em dourado, fitilho e toda a pompa da realeza. Uma legítima caravela de Colombo.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 29 de novembro de 2023.