por Audaci Junior*
É equivocado falar que Umahistória (Veneta, 132 páginas, R$ 99,90), do italiano Gipi, gira em torno de duas tramas, separadas pelo espaço/tempo. O artigo e o substantivo “colados” do título refletem bem a definição de unidade, não só narrativa (que consequentemente foi esmigalhada em milhares de pedaços), como também nas inspirações relativizadas que vão além dos aspectos biológicos consanguíneos.
Mesmo assim, o tempo passa (belíssima metáfora que o autor faz com as glândulas lacrimais – “Tão malévola é a natureza quanto amorosamente protetora a nossa cegueira”) e os pecados ancestrais continuam ligados como os galhos da árvore genealógica, que teima ficar erguida, mesmo que seja solitária.
Há a necessidade de escrever, de se sentir vivo, mesmo que isso venha com sacrifícios. São sacrifícios de amizade, sacrifícios que se fazem no “campo de batalha” – seja o físico, o espacial, como também no mental e familiar. Um personagem quer rever a família, o outro a destrói (mas não se engane: o “vice-versa” se faz presente também). Tudo na ponta de um lápis (pode-se até traçar um paralelo com o que o autor iria fazer anos depois, em A Terra dos Filhos).
A sutileza que ele vai amarrando e revelando mais dos personagens é algo tão tênue, que se deve prestar atenção ao motivo de mostrar, por exemplo, uma sequência de paisagens. A conexão está lá atrás, no desejo de um personagem. Por falar em “desejo”, dá para senti-lo no silêncio. Dá pra lê-lo em vários ensaios rabiscados (e riscados). Dá para notá-lo na pele lisa de uma dama entediada e na resposta de um pênis em riste (alusão à “arma” que será pensada a seguir para a guerra bélica).
Uma árvore solitária, um instinto de sobrevivência. Você pode virar cobaia de cientistas, como também pode virar cobaia de inventores. A voz narrativa de cada personagem reflete seus estados mentais, bem como a arte situa também a narrativa fragmentada e não linear que Gipi impõe.
Ainda sobre a arte de Umahistória, como ela é importante para se “ler/decodificar” em traços e hachuras confusas ou em pinceladas que revelam a textura do papel no céu acinzentado (e, por vezes, incandescente). Grades que empatam a leitura do balão, pois o pensamento do personagem não está na sala, ou ainda tão rudimentar e de uma puerícia tão infantil, que parece desvanecer como por efeito de psicotrópicos.
Tudo carregado por um ar melancólico, que, mesmo na beleza e poesia, se torna denso nas luzes artificiais de um posto ou na iluminação de um dia como os outros. A velha máxima dos dois lados da mesma moeda: ambos estão presos, ambos possuem elementos obsessivos, ambos têm esperança, ambos são um... em umahistória.
*Resenha publicada originalmente na edição impressa de 6 de janeiro de 2023.