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Resenha

Um “protagonismo silencioso” que perfuma uma obra-prima

publicado: 16/10/2024 09h13, última modificação: 16/10/2024 09h13
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Obra traz um recorte “subjetivo” da importância da governanta e secretária nos últimos anos da vida do escritor Marcel Proust | Imagens: Reprodução/Editora Nemo

por Audaci Junior*

Primeiramente, nada do mergulho nas memórias involuntárias por conta do sabor e aroma vindos de uma madeleine, uma das famosas sequências presente no opus magnum do francês Marcel Proust (1871-1922), Em Busca do Tempo Perdido, que foi publicado em sete partes, entre os anos de 1913 e 1927.

O sabor das memórias em Céleste e Proust (Editora Nemo, 256 páginas) será mastigado pela sua governanta e secretária, que divide o título com seu “patrão”. Na verdade, a ótica vem majoritariamente da conterrânea de ambos, a quadrinista Chloé Cruchaudet; porém, em uma visão totalmente subjetiva das fontes e referências que ela coletou para realizar os dois álbuns que são apresentados em volume único no Brasil.

Não é a primeira vez que a artista desata os nós das amarras documentais. Mesmo servindo de base, ela realizou a mesma “técnica” em Degenerado (Nemo, 2020), sobre a história verídica de um soldado que abandona as trincheiras da Primeira Guerra Mundial para encarnar uma travesti na clandestinidade.

Cruchaudet gosta de preencher os hiatos dessas histórias com o que “poderia ter acontecido”, o que torna a narrativa bem mais fluida, menos didática e mais prazerosa de se ler. Por conta disso, não sabemos o quanto tem de veracidade e o quanto tem de ficcionalização com base nas fontes. Talvez alguns leitores não gostem desse caminho — ou seria um “desvio de Swann”? —, mas o que testemunhamos é um amadurecimento experimental/visual da autora, que só os quadrinhos poderiam oferecer.

Funciona para quem não conhece nada de Proust (embora a edição pudesse trazer uma apresentação ou posfácio para os leitores e leitoras de primeira viagem). Aqui, a história é pelo prisma da governanta e secretária, Céleste Albaret (1891-1984), nos últimos anos da vida do escritor.

Uma mulher que veio do campo, casou-se com um motorista e, mesmo antes de o marido ser convocado para servir na Primeira Guerra, era muito solitária na imensidão da capital francesa. Acompanhamos como ela vai se adaptando à vida notívaga de Proust, que era um dândi egocêntrico, cheio de excentricidades e com a saúde bastante deteriorada desde os tenros anos, com o quadro agravado pela constante pressão de ser um escritor. Há quem não vá simpatizar com o “personagem”.

Um recorte bem inventivo de Chloé Cruchaudet, principalmente quando a quadrinista extrapola a “realidade” e puxa a narrativa mais para o abstrato e o metafórico, com um traço elegante e aquarelas bem trabalhadas. Há, por exemplo, uma página dupla na qual não existe nenhum traço, apenas um elemento gráfico que diz tudo o que tinha para dizer. Em outra, os papéis se invertem e, no encontro da governanta com a sua irmã, os odores fraternais servem para uma viagem em suas memórias rurais.

Nas últimas páginas da edição,  há uma dedicatória que Proust fez para Céleste e uma passagem de um dos livros de Em Busca do Tempo Perdido, no qual ele cita a governanta e a irmã desta, além de algumas fotos.

Um problema de não vir com paratextos é, mesmo Céleste Albaret sendo a protagonista, não sabemos muito sobre a vida da personagem pós-Proust, mesmo a HQ sendo narrada em flashback.

Mesmo não conhecendo o (verdadeiro) papel da Céleste na vida de Proust por conta da “subjetividade” de Chloé Cruchaudet, percebe-se o quanto ela foi importante e com uma “influência silenciosa” para o escritor focar na produção de sua obra-prima. O que nos coloca em busca de saber mais sobre essa mulher essencial, mas muitas vezes esquecida, do universo literário.

*Resenha publicada originalmente na edição impressa do dia 16 de outubro de 2024.