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Resenha

Uma família (fantástica) de verdade

publicado: 24/07/2024 09h04, última modificação: 24/07/2024 09h04
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Na HQ “Moléculas Instáveis”, o Quarteto Fantástico é uma família “pé no chão” | Imagens: Divulgação/Panini Comics

por Audaci Junior*

O que podemos encontrar em uma família comum? Afetos, desentendimentos, parcerias, intimidades, instabilidades e todo o pacote básico que vem com os parentes e agregados.

Nos anos 1960 (época em que a “família” era muito valorizada), os quadrinistas Stan Lee (1922-2018) e Jack Kirby (1917-1994) criaram o Quarteto Fantástico, equipe formada pelo casal Reed Richards (o Sr. Fantástico) e Sue Storm (Mulher Invisível); o rebelde Johnny Storm (Tocha Humana), irmão mais novo de Sue; e o marrento Ben Grimm (o Coisa), um dos melhores amigos de Reed.

Mais do que uma equipe, eles formam “a primeira família de super-heróis da Marvel”. Porém, em Quarteto Fantástico — Moléculas Instáveis (Editora Panini, 128 páginas), a história abandona a luz dos raios cósmicos e deixa para trás as aventuras no espaço ou em outras dimensões para fincar os pés no chão de uma possível realidade.

A premissa do roteirista James Sturm é a mais básica possível: e se o Quarteto Fantástico tivesse existido, de fato? E se a história do homem que pode esticar seu corpo como borracha, a mulher que se torna invisível, o garoto que fica em chamas e o homem feito de rocha fosse baseada em pessoas de “carne e osso”?

Com o traço funcional, estilizado e minimalista de Guy Davis, a edição que junta as quatro partes da minissérie vencedora do Prêmio Eisner — o “Oscar” dos quadrinhos — como melhor série limitada, em 2004, tenta responder essas perguntas.

Para deixar tudo crível e menos fantástico, o leitor ou leitora de primeira viagem vai achar que é, realmente, uma biografia das pessoas, cujas vidas cotidianas cruzaram com as de Lee e Kirby e resultaram na família de super-heróis de papel. Por isso, James Sturm empresta seu sobrenome para os irmãos Storm, Sue e Johnny, simula e-mail de um parente de alguém que estava na Marvel e ouviu falar da história de como o grupo era baseado na realidade, testemunha nos textos extras como foi se encontrar com um dos coadjuvantes que lançou uma biografia, um encontro por acaso com um editor da Marvel em um metrô antes de ser convidado para escrever o gibi, até mesmo monta uma bibliografia das obras que se baseou para compor a trama de Moléculas Instáveis.

Montando esse cenário tão meticuloso (incluindo a promessa de que a obra se desdobrasse para uma trilogia) e passado na época em que o quarteto “ficcional” seria criado, observamos um Reed Richards bastante ocupado com suas descobertas (com o governo de olho na sua genialidade), uma Sue Sturm frustrada por ser uma jovem “dona de casa”, preocupada com a rebeldia do irmão, e que encontra o mínimo de atenção com o amigo da família, o ex-boxeador e namorador Ben Grimm.

Entre os personagens, a melhor explorada é a Sue, principalmente no contexto machista, cruel e conservador que o período espelha. Várias camadas de crítica social pode ser vista, inclusive entrecortando com a saga da Mulher-Vapor, outra peça “fictícia” que Sturm — o roteirista — inventou como um gibi criado por Lee e Kirby, e que Sturm — o jovem rebelde — mergulha na leitura (e na fantasia) como um escape do marasmo de seu cotidiano. Sue Sturm se torna invisível, realmente, aos olhos do marido, do irmão, dos vizinhos e da sociedade em si.

Para quem não conhece a contraparte “fantástica”, a HQ ainda apresenta as páginas “verdadeiras” de Lee e Kirby para a criação dos super-heróis. Para toda a família.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 24 de julho de 2024.