Desde quando você se interessa por esporte, ou melhor, por futebol? – é o que me pergunta a amiga, no café do Sebrae, quando me despeço alegando o motivo. Tem sentido a pergunta.
Quando o Brasil começou a jogar, na Copa de 1958, é possível que eu não atinasse com o nome de um único jogador do time. Vivia de cabeça baixa, em emulação com Adalberto Barreto e ainda sob influência de Geraldo Sobral, num outro gramado: as obras-primas da literatura que a Livraria Globo, de Porto Alegre, traduzia para os monoglotas do país. Meu negócio era ler sob a claridade na biblioteca da General Osório e, de pé, nas orelhas do acervo comercial do livreiro Otacílio Gama, a quem muito ficou devendo bom número de leitores da minha geração. Ele não era comparsa de leitura mas se sentia mão aberta no papel de livreiro.
Eu não ligava para as aulas do Liceu e tinha dificuldade em assimilar o texto então burocrático da redação de A União, tudo por conta do feitiço literário. Não me motivava a sala de aula, desviado pelos caminhos apontados por Hypolite Taine, que li antes do tempo, já passado o seu prestígio de intérprete do fenômeno artístico. E haja a caírem sobre o primarismo de minhas pretensões as Cartas a um jovem poeta de Rilke e Lima Barreto, que o acaso me levou a encontrar as Recordações do escrivão Isaias Caminha na prateleira de baixo de uma estante da Biblioteca Pública. O relógio não marcava, o que marcava era você entrar e sair sem limite de tempo de O crime do Padre Amaro, de As Ilusões Perdidas, de um Werter, mesmo na tradução de Castilho, de um Vermelho e o Negro ou do delírio que nos envolve em Brás Cubas, nos Karamazov, novos deuses recriadores de homens e de mundos.
Nem nos lembrávamos de que não havíamos levantado o dinheiro do pensionato, nem mesmo o da lavadeira. Um cigarro atrás do outro ajudando a não dar trela “às questões materiais”. Ora, ora!
De forma que, quando vimos aquele acelero de repórteres, redatores, revisores, gráficos, contínuos, em torno do rádio é que a custo nos apercebemos do grande evento a se desenrolar na Suécia. Além do mais, como gato escaldado, eu ainda não me refizera do trauma de 1950 vivido através do rádio com bancos interrompendo o tráfego da rua principal de minha Alagoa Nova.
Com o trauma, eu evoluíra para outras paixões, outros tentos. A própria realidade me oferecia novidades que já ambicionava em meus dezessete anos: o Brasil, lá no Rio Grande, encampava a Bond &Share e a ITT, medindo forças com o capital imperialista; JK desatende o FMI de um lado e atende à Hanna na exploração do nosso ferro; Anísio Teixeira lidera uma campanha nacional em defesa da escola pública contra o projeto privatista de Lacerda. O que nos divertia mesmo em seu humor político era Juca Chaves: “O Brasil já vai à guerra / Comprou porta-aviões /Um viva para a Inglaterra! / Oitenta e dois milhões: mas que ladrões!” Quando vim descobrir Pelé, Vavá, Garrincha, heróis da consagração unânime, já foi na final da Copa.
Esta semana, torcendo pelo Brasil na camisa do Flamengo, terminei me vendo na culpa dos quatro pênaltis perdidos. Exausto, correndo atrás do multinacional time francês a maior parte do tempo, não vendo bem o arco em frente, terminaram chutando com minhas pernas. E deu no que deu.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 21 de dezembro de 2025.