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A banca do menino

publicado: 19/08/2022 00h00, última modificação: 19/08/2022 11h24

por Felipe Gesteira*

Era tradição a cada jogo da Seleção Brasileira na Copa do Mundo a família fazer uma rodada de apostas. Levava o montante arrecadado quem acertasse o resultado exato. Pelas regras criadas entre eles, não era permitido repetir aposta. Então se o tio dissesse que o Brasil venceria a Rússia na estreia por 2 a 0, ninguém mais poderia escolher aquele placar. A regra era injusta para quem chegava depois e se via obrigado a torcer por uma improvável vitória elástica, ou muitos gols numa partida. Os mais espertos começavam na lógica: 1 a 0, 2 a 1, mas sempre com o Brasil vencendo, com exceção do cunhado chato, torcedor da Argentina, que fazia questão de perder dinheiro em prol da diversão de aporrinhar torcendo contra. 

Aquele jogo diante do time da casa tinha tudo para ser festivo. Uma Seleção praticamente figurativa, sem qualquer tradição no futebol, contra a camisa mais bonita, pesada e vitoriosa de todas. A partida entre Brasil e Estados Unidos pelas oitavas de final da Copa do Mundo de 1994 seria o grande espetáculo do evento. Marcaria a honrosa despedida dos americanos naquela campanha histórica com a classificação para a segunda fase.

Mas o jogo esquentou. Muito. Esquentou pelo sol no pingo do meio-dia, que tornava as condições praticamente inviáveis para os atletas em campo. Esquentou também porque a partida caiu exatamente no Dia da Independência deles, 4 de julho, o que fez com que o time rendesse para muito além das suas condições técnicas, empurrados por um estádio lotado e pelo sonho de vencer os tricampeões mundiais numa data tão significativa. 

Thiaguinho acompanhava sua primeira Copa do Mundo, e para não ficar de fora da tradição familiar, resolveu apostar R$ 0,25. As apostas médias eram de R$ 1, mas para criança se flexibilizava um valor menor. E um real, naquela época, não era como hoje em dia que não dá pra comprar nem uma penca de bananas. O prêmio de cada partida era tão visado quanto a vitória da Seleção. 

A tensão dentro de campo extrapolava as quatro linhas e alcançava cada torcedor à frente da TV. Não ficava um só quieto. Era unha roída, gola de camisa arregaçada, pálpebra tremendo, gente chorando de nervoso. Quando Leonardo deu a cotovelada que quase matou o jogador adversário, o tio de Thiaguinho, que apostava em vitória do Brasil por 1 a 0, abdicou do seu palpite, fez confusão, disse que não queria mais acumular a função de apostar e organizar a banca nem por um decreto. No fim do jogo, já manso, quis reivindicar o prêmio, mas aí a família deu-lhe um brabo. A partir do próximo jogo, o responsável por receber as apostas seria o menino. Houve argumentos contrários, evidenciando a falta de experiência nos seus dez anos de idade, mas venceu a tese de que a inocência da criança traria lisura ao processo e os adultos poderiam apostar em paz.

Thiaguinho achou foi bom. Enquanto a família se aperreava no jogo contra a Holanda, ele segurava o dinheiro e observava as expressões de quem estava prestes a ficar com o prêmio da partida. Sua mãe apostara 3 a 2 para o Brasil sob protestos de toda a parentada, pois diziam que seria muito tenso se ela ganhasse. No gol de Branco, a mãe vibrou pelos R$ 10 acumulados e pela vitória do Brasil. 

Ninguém queria saber de dinheiro na final contra a Itália. O sonho do tetra estava tão perto que quase esqueceram de apostar. Foi o menino quem lembrou, e propôs apostas em dobro, para o tumulto ser ainda maior. Partida em zero a zero, prorrogação, gol que não saía de jeito nenhum e disputa por pênaltis. A vitória do Brasil em cima dos italianos virou a casa abaixo. Todo mundo suado, abraçado, gente desmaiando e mais gente bêbada e chorando. Thiaguinho puxava a roupa de cada adulto para saber de quem seria o prêmio, já que ninguém havia apostado em 0 a 0. E a todo mundo que ele perguntava quem ganhou, a resposta era a mesma: 

— Brasil! É Tetra, meu filho!

A peregrinação continuou até que o único sóbrio no recinto cochichou em seu ouvido. 

— Quando ninguém acerta, vence a banca. 

Em sua primeira Copa do Mundo, o menino de sorte viu o Brasil ser campeão e ainda ficou com uma bolada.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 19 de agosto de 2022.