por Felipe Gesteira*
Davi e Gabriel achavam que era pouco terminar um ano difícil como aquele, segundo de uma pandemia, com meras disputas no campinho poeirão do bairro. Emocionantes, sim, porém ordinárias. Sem nada além dos 10 minutos ou dois gols para determinar que o time derrotado teria que dar a vez ao próximo da fila. Aconteciam ali peladas no formato tradicional, e como o campo não era dos menores, acomodava equipes com três na linha, o suficiente para um defensor, um atacante e ainda um jogador no meio, que pudesse armar para frente e também voltar para ajudar na marcação.
A necessidade de realizar um torneio, mesmo que de modo totalmente amador, mas com medalhas para os vencedores, era celebrar a volta das partidas. No ano anterior, os adolescentes do bairro ficaram trancafiados, sob os cuidados dos pais que, responsavelmente, seguiram as recomendações sanitárias para conter a disseminação do vírus. A incerteza pairava no ar, enquanto as bolas só rolavam nas garagens de casa. Um ano depois, com vacina nos braços e todos os cuidados, a poeira do campinho voltou a sujar as camisas de meninos e meninas que se aventuravam naquelas tardes de arenga esportiva.
Com a ideia de realizar um campeonato, Seu Marcílio, dono do mercadinho do bairro, logo se prontificou a patrocinar um troféu para o vencedor. Gabriel e Davi vibraram com a vibração da vizinhança até que foram questionados sobre o regulamento da competição. Eram meninos bons de coração, mas desconectados de tudo o que exigisse um pouco mais de intelecto. Precisavam criar as regras da disputa e ainda de um árbitro para manter a ordem durante os jogos.
Imediatamente o nome de Cristina acendeu na mente dos dois. Ela era a menina mais inteligente do bairro. Sagaz a ponto de observar regras de qualquer jogo e questionar até o que estivesse dando certo, mas que na visão dela poderia ficar melhor. Cristina se metia em tudo quanto era disputa, sempre com comentários pertinentes. Se à primeira vista parecia até ser chata, logo mostrava que não se tratava de chatice, mas perspicácia em torno do bem comum.
Foi por conta de Cristina que as partidas deixaram de ser intermináveis, com a inclusão da regra de tempo. Antes, vencia quem fizesse dois gols, e por muitas vezes o segundo teimava em não sair. Foram dela as propostas do gol de ouro, arremesso lateral rasteiro, barreira com apenas um jogador na cobrança de falta, e tantas outras pequenas mudanças que atraíam mais olhares e fãs para a chamada “menina da regra”. Bastava ela aparecer e a pelada se coloria. A chegada de Cristina era como um raio de sol num dia cinza, a cintilar nos olhares abobados.
Era então consenso entre os dois proponentes do I Campeonato de Travinha das Oito Ruas que a menina da regra seria a criadora do regulamento e árbitra da competição. O que eles não consideraram foi que Cristina não podia jogar e arbitrar ao mesmo tempo. Grande foi o sopapo que levaram dela quando foram dar a notícia da arbitragem. Além de inteligente, linda, bem-humorada, perspicaz e vacinada, Cristina era boa de bola. A leseira dos dois patetas foi maior porque eles esqueceram que era ela o cérebro do trio deles. O passe refinado, quase como quem dança, e a gana de voltar para marcar que só ela tinha. Depois de um carão do grande, ela topou construir o regulamento, mas se negou a apitar. Iria entrar como jogadora e para disputar o título.
(continua…)
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 17 de dezembro de 2021.