por Felipe Gesteira*
O regulamento para o I Campeonato de Travinha das Oito Ruas foi minuciosamente planejado. Havia previsão para tudo quanto fosse conflito, desde as possíveis irregularidades nas inscrições dos atletas, passando por embates sobre faltas, cobrança de penalidades, regras para expulsões, desempate. Até a forma como a bola deveria passar por entre as traves para que o gol fosse validado estava prevista. Como Cristina havia passado por média em todas as disciplinas na escola, teve tempo de sobra para se dedicar à elaboração de cada item, o que para ela era também motivo de diversão.
Os meninos não entendiam pra que tanta regra e chegavam para espiar o trabalho da menina que tentava prever tudo o que podia dar errado no futuro próximo. Aqui e ali, metiam um pitaco, que logo era refutado com bons argumentos. Esqueciam eles que a pitaqueira do bairro era ela! “Virada no traque”, como diziam seus pais, Cristina era conhecida por se meter em tudo. Mas o que deixava os meninos virados do avesso era sua perspicácia, pois não havia um pitaco sequer que não fosse pertinente. Em todo lugar onde a menina dava sua opinião, eles até entortavam a cara no início, mas depois percebiam que vinha a ser para melhor.
Como havia sido acordado pelos idealizadores da competição, Cristina ficaria responsável pelas regras, mas na hora de rolar a bola, entraria como jogadora. Para o lugar do árbitro, chamaram Henrique, o menino que morava de frente ao campo. Ruim de bola que só ele, mas bom de métrica e exímio prestador de atenção. Tinha tudo para dar certo como juiz de futebol.
Regulamento finalizado e revisado, está tudo pronto para a abertura do registro das equipes. Para garantir a competitividade, a regra havia sido ajustada: cada partida se encerraria com três gols ou 15 minutos, mais prorrogação de cinco minutos com gol de ouro em caso de empate no tempo normal. Caso o empate fosse mantido, seguiriam os pênaltis.
O trio composto por Cristina, Davi e Gabriel entra como favorito para a conquista do título. Mas a taça não deve vir assim tão fácil, pois muita gente se interessou no evento e as inscrições superaram todas as expectativas. Até quem nem jogava tanta bola assim resolveu arriscar. Gabriel e Davi veem os adversários sem tanto preparo como um treino leve. Para Cristina, não. Todo trio merece respeito. Ela não conta com nada além do seu próprio esforço. Desconsidera, assim, a própria sorte, da mesma forma que não subestima a ventura do rival.
O grande número de trios inscritos obrigou a competição a usar a regra que previa um modelo unicamente eliminatório em todas as partidas. É preciso respeitar cada adversário, pois um deslize pode resultar em desclassificação. Assim pensa Cristina em seu ritual de concentração à beira do campo, enquanto seus dois companheiros de trio caçoam do primeiro adversário.
O trio dos irmãos de barro era conhecido da vizinhança, mas Jair, o mais velho, nunca tinha jogado bola naquele campo. Ele sempre estava por lá, principalmente nos fins de semana. E dizia que não aparecia nos outros dias porque estudava em tempo integral. Eram conhecidos como “irmãos de barro” porque tinham medo de tomar banho de açude.
Foi no excesso de confiança de Davi e Gabriel que Jair marcou dois gols em três minutos. E como era bom de bola o mais velho dos ‘barrentos’! Indignada, Cristina pede tempo, dá um puxão de orelha nos dois parceiros e muda o posicionamento tático do trio. Ela coloca os dois meninos plantados na zaga para impedir o gol da eliminação enquanto deixa o meio campo e vai sozinha ao ataque. O campeonato mal começara e já era momento de tudo ou nada para os três que mais sonharam viver a emoção daquela disputa.
(continua…)
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 24 de dezembro de 2021.