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A menina da regra (parte 3 de 3)

publicado: 30/12/2021 08h00, última modificação: 21/01/2022 10h00

por Felipe Gesteira*

Gabriel e Davi estavam atônitos. Nem os gritos de Cristina pedindo para o trio se recompor traziam eles de volta ao jogo. Os dois gols marcados por Jair, o mais velho dos três irmãos de barro, foram golpes duros o suficiente para derrubar o time que até então era favorito. Os meninos se comportavam como a zaga da Seleção Brasileira no fatídico 7 a 1 contra a Alemanha. A partida não estava acabada, faltava um gol para sacramentar a eliminação, e só não veio no minuto seguinte por pura sorte, pois a defesa mal sabia o que fazer.

Mas a sorte não costuma ficar do lado de quem pouco se ajuda.

Mais um minuto de bola rolando e, de novo ele, Jair, pega o rebote de um chute para o gol feito por Cristina e avança sobre os dois defensores que ainda procuram saber onde estão após os dois gols sofridos. Ele dribla ambos com um só movimento e chuta de longe, com pé chapado, sem olhar para a direção da meta, numa referência ao bruxo Ronaldinho Gaúcho. Antes mesmo que a bola atravesse as traves compostas por chinelos, os irmãos de barro se abraçam e comemoram a classificação.

No entanto, em vez de apitar a vitória, o juiz Henrique chama o VAR. Havia um menino na beira do campo filmando tudo. Era o assistente da arbitragem, que de tão pequeno e franzino ainda não podia jogar, então, para participar da competição que movimentava o bairro, foi encarregado das imagens. 

Henrique era bom de métrica e prestador de atenção como poucos. Percebeu que a bola quicou antes de passar pelo gol. O artigo 132 do livro de regras do I Campeonato de Travinha das Oito Ruas é claro quando diz que o gol só pode ser validado se a bola passar rasteira por entre as traves, com tolerância máxima para a altura das correias das sandálias. 

O vídeo filmado do ponto de vista da lateral do gol mostra exatamente a bola passando um milímetro acima da altura permitida. Houve protesto por parte do time prejudicado. Os irmãos de barro acusaram Henrique de usar a regra somente por ser fã de Cristina. A admiração do juiz pela jogadora era verdadeira, assim como era justa a motivação para anular o gol com base na regra. Uma coisa não tinha nada a ver com a outra e foi dado o apito para recomeçar o jogo. 

Cristina jogou um copo de água gelada no rosto de cada companheiro e exigiu mais atenção. Pegou a bola, cobrou ela própria a saída e partiu para receber de volta, mirando nos adversários, driblando sozinha e marcando o primeiro gol do seu trio, que ainda estava por um triz, mas apresentava sinais de reação. 

O jogo ficou ainda mais pegado na reta final. Cristina viu que na banheira não resolveria o problema e voltou para marcar. Era retranca sim, apesar do placar desfavorável, mas sua estratégia era tentar roubar a bola e resolver sozinha novamente, enquanto o trio adversário forçava o fim da partida pelo placar em vez de usar o tempo a seu favor. 

Deu certo! A menina da regra arrancou, driblou todo mundo e marcou o gol de empate. A lateral do campo estava lotada. Gente de tudo quanto era lugar se amontoava para assistir à prorrogação, que agora viria com o gol de ouro. 

Cansada de carregar o time nas costas, ela não viu Jair cortar luz e receber a bola por trás dos defensores, livre para marcar sozinho o gol decisivo. Os irmãos de barro comemoram. Seu Marcílio, pai deles, dono do mercadinho e patrocinador do evento, vibra junto, mas cala a plateia ao dizer “tua mãe e teu pai vão se orgulhar, Jair!”. 

Como assim? A dúvida correu pelas cabeças das crianças, que logo cercaram Seu Marcílio para entender, pois se não era ele o pai dos meninos que viviam com ele, quem era então?

Seu Marcílio era tio, e cuidava dos meninos durante o dia para que sua irmã, Odete, pudesse trabalhar. Como os três passavam o dia no mercadinho, a vizinhança acreditava que moravam lá, mas Odete, que vive com os três filhos no bairro vizinho, deixava eles de manhã cedo e buscava só à noite, fora do horário de criança na rua. Por isso ninguém sabia. Como o regulamento restringe a participação aos moradores das Oito Ruas, a mentira eliminou o trio dos irmãos de barro. Davi, Gabriel e Cristina se classificaram. E a menina que era boa em tudo venceu com a bola no pé, o regulamento debaixo do braço e a verdade do seu lado. 

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 30 de dezembro de 2021.