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Alter ego

publicado: 23/06/2022 09h27, última modificação: 23/06/2022 09h27

por Felipe Gesteira*

Seja de rio ou de mar, há força nas águas para cura de todo mal. Foi lá que Abel aprendeu a afundar seus problemas, dúvidas e conflitos. Sua energia desprendida no remo exalava em cada gota de suor o peso que o cotidiano o impunha. E assim como a vida, eram seus treinos, com esforço e dor, muitas vezes contra a correnteza, porém, algumas outras, também a favor.

O processo que o faz deixar tudo de lado e se conectar apenas com o mar é como parte de um ritual. Ao sentar, se despede de tudo o que lhe prende, respira profundamente olhando para o céu e se conecta com a centelha do divino que existe dentro de si e reverbera na natureza. 

Para Abel, mais que treino, remar todos os dias é sagrado. Após precisar passar meses inativo, a volta foi dura com seu corpo. A mente operava no automático, tanto no sentido da desconexão com o ambiente, como no processo físico de mandar o comando para que pernas, braços e abdômen executassem o complexo movimento necessário para fazer a canoa se deslocar nas águas do mar. 

Naquele dia da volta, no entanto, ele não estava sozinho. Sua jornada introspectiva no encontro do alívio por meio da exaustão incluiria uma competição. Abel confrontava um oponente mais jovem, forte e decidido. Vencer não seria uma tarefa das mais fáceis. Diferentemente de outros esportes, a forma física é preponderante no remo. 

No futebol, um jogador mais velho conhece ‘os atalhos’ do campo e compensa sua inferioridade física com melhor posicionamento; no hipismo, quem necessita de melhor condição atlética é o cavalo, mas a dupla precisa estar bem fisicamente, e ainda assim a experiência faz diferença a favor; no automobilismo, que em tese exige mais da máquina que do piloto, há sim grande esforço físico, mas o atleta mais rodado consegue fazer frente a um novato. Até mesmo nas lutas marciais quem sabe mais dá aula contra quem aposta tudo no desempenho. 

Abel começou remando forte e manteve-se no páreo, bico a bico com seu desafiante. As dores que ele sentia pela falta de ritmo de treinos talvez não castigassem da mesma forma o atleta mais jovem. Doíam o quadril e as costas, mas o que ele não contava a ninguém é que a dor também compõe a catarse que configura aquela fuga diária da vida.

Após cinco minutos de ritmo intenso, uma distração o tirou da disputa. O adversário estava cerca de dez segundos à sua frente, o que, àquela altura, era impossível recuperar. Restava a Abel não se entregar e tentar ao menos impor a constância do início da prova para concluir da melhor forma possível. Ele não entendia porque perdera, já que, fisicamente, se encontrava tão bem ou até melhor que seu rival.

Naquela competição, Abel percebeu que a juventude não se faz só de performance física. Foi sua mente que o tirou da peleja. Um lapso só, num pensamento que pousou onde não devia, como a falha do passado contra quem não merecia, o pedido de desculpas não proferido, o beijo que deixou de dar a quem não está mais neste plano para recebê-lo. 

Derrotado pela própria falta de concentração, levantou-se do equipamento da academia onde costuma se transportar para esquecer do mundo. Seu eu mais jovem vencera, mas naquele dia, Abel decidiu, para além do corpo, cuidar também da saúde mental.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 24 de junho de 2022.