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Amor que aperta

publicado: 02/12/2022 00h00, última modificação: 02/12/2022 10h03

por Felipe Gesteira*

Alberto nunca acreditou na tese do amor à primeira vista. Perto dos quarenta anos de idade, viveu muitos amores, outros tantos desamores, mas aquele de tomar o fôlego de assalto, até então só ouvira falar. Achava na verdade se tratar de uma falácia, exagero dos enamorados para exacerbar suas vivências. Sozinho numa pequena cidade no interior da Argentina, o viajante respirava apenas o clima de Copa do Mundo, com a alegria dos hermanos e a fé de que Lionel Messi finalmente traria a conquista de volta ao país de Maradona.

Foi na partida de estreia, num bar de meio de rua com telão para transmissão do jogo que Alberto perdeu o ar pela primeira vez de forma arrebatadora. Ela estava de pé, com um terço na mão, e na outra uma cerveja de um litro. Até a garrafa tinha o principal craque argentino estampado no rótulo, e a cada vez que a bola saía, a bela torcedora virava um gole diretamente no gargalo. O que primeiro atraiu a atenção de Alberto foi a obra de arte de Salvador Dalí tatuada na panturrilha, "pintura sobre uma escultura", pensou. Seguiu percorrendo todo o corpo, das pernas ao rosto, até que seus olhares se cruzaram logo após o gol que abriu o placar da partida. Pênalti convertido por Messi e um sorriso do tamanho de uma avenida se abriu na direção de Alberto. O mais bonito que vira em toda a sua vida. Ele pediu um gole da cerveja, pegou a próxima e começou a torcer junto de Estefânia.

Cerveja vai, cerveja vem, Alberto se apertou para ir ao banheiro. Lá de dentro, ouviu um urro coletivo, a tristeza conjunta que pelo som só poderia ter sido por queda de avião ou gol da Arábia Saudita. Quando volta, pega mais uma garrafa, consola sua parceira de torcida e segue bebendo, mas logo sente vontade de ir novamente ao banheiro e, como num déjà vu, ouve outro lamento. Ao sair, percebe a tristeza nos olhos da moça. A Argentina perde na estreia. Ele tenta consolar, chama ela pra beber, a conversa avança, e na hora que busca o beijo daquela que pouco antes lhe tirou o ar, é interrompido. Estefânia havia prometido que não beijaria ninguém até que a Argentina se classificasse para a fase de grupos.

Daí em diante os dois combinaram de assistir juntos aos jogos seguintes, e Alberto se descobriu um torcedor fervoroso, daqueles que passam dias lendo sobre estatísticas para tentar entender melhor sobre cada jogador em campo. Na partida contra o México, vivia a euforia da iminente vitória, inebriado pelo cheiro que exalava do pescoço de Estefânia. Mas se não podia beijá-la, ele bebia. E após o primeiro gol argentino, quando se levanta para ir ao banheiro, descobre que sua parceira é tão apaixonada por futebol quanto supersticiosa. Ela segura firme no punho de Alberto, impedindo que ele se levante, e diz que foi das vezes que ele esteve no banheiro que a Argentina sofreu os gols. Alberto se desespera, para de beber, esquece o jogo e passa apenas a se concentrar.

Na partida contra a Polônia, Alberto se via a 90 minutos de beijar Estefânia, ou 4 anos, caso a classificação escapasse e a promessa da jovem se mantivesse até a Copa seguinte. Ele sabia que não poderia beber até que a vitória estivesse garantida com folga, mas toda vez que aquele goleiro polonês de nome impronunciável realizava um milagre na defesa ele temia por seu sonho e virava um gole dos grandes.

No primeiro gol da Argentina, Alberto nem lembrava mais da superstição de Estefânia, abraçou-a pela cintura, por pouco não a beijou, foi abraçado por desconhecidos, virou quase metade da garrafa de cerveja de uma vez, quando lembrou do impedimento ao banheiro. Entrou em desespero. O bar estava em festa e ele era puro aperreio. Mais um gol, novo frenesi, e ele, já além do que podia segurar, bebeu ainda mais. Quando o juiz finalmente encerrou aquele suplício, foi de Estefânia a iniciativa do beijo. Ela apertou Alberto com tamanha vontade que pressionou sua bexiga, fazendo com que ele não conseguisse se segurar. Alberto se urinou todo. Para disfarçar, abriu mais uma garrafa de um litro e derramou sobre a cabeça, em êxtase, enquanto gritava "AR GEN TI NA!

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 2 de dezembro de 2022.