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Amor que dói

publicado: 25/11/2022 00h00, última modificação: 24/11/2022 10h21

por Felipe Gesteira*

— Alguém aqui é médico? Este homem está infartando!

O grito chama a atenção daqueles que voam de João Pessoa com destino a Guarulhos. Já no ar, não há muito o que fazer, caso se trate mesmo de uma pane no miocárdio. Felizmente é alarme falso. O suposto paciente, ainda urrando de dor e com as duas mãos pressionando o peito, logo trata de tranquilizar a tripulação.

— Não é infarto não, minha gente. É só raiva, mas tanta que dói. Onde já se viu Taffarel ser eleito o melhor goleiro de todos os tempos só porque era mais carismático? Se for seguir esse critério, Aloísio Chulapa vai desbancar até o Rei Pelé.

O desejo de Araújo é só conseguir atravessar o mês da Copa do Mundo sem nem ouvir falar de futebol. Não que ele seja avesso à paixão nacional, pelo contrário, gosta tanto a ponto de lhe causar constantes apertos. E nessa Seleção de Tite ele não bota fé nenhuma. Muita promessa somada a todo o palavreado difícil para explicar as táticas numa clara demonstração de arrogância intelectual, como se o futebol tivesse sido inventado por eles. O prenúncio da tragédia não é totalmente injustificado, pois as decepções da última Copa América perdida para a Argentina e do mundial da Rússia são ainda feridas abertas. Mas para Araújo, pior mesmo é ter Neymar e Thiago Silva como referências de liderança em campo.

Além do gosto ruim que Araújo coloca nesta Seleção, há um quê de agouro. Ele sentiu que viria a dar errado muito antes de a Copa começar. E tamanho é seu amor pela camisa que, mesmo com todo abuso pelo atual elenco, sofre na iminência de uma possível derrota. Os mais entendidos de futebol dizem que não há o que temer, pois o Brasil é favorito. Mas se a Argentina que também é tomou aquele sacode para a Arábia Saudita, que dirá o time de Tite. Para não sofrer, o pobre torcedor decide se isolar na casa de um primo, no interior de São Paulo, que vive uma vida completamente desconectada do mundo, sem TV e internet. Um mês lá e ele se livra da Copa. Na volta, se o Brasil tiver vencido, assiste à reprise da final. Certo mesmo é não sofrer. Mas antes, é preciso chegar ao destino.

A tarefa de fugir do assunto morando no país do futebol é sofrida. Para onde se olha há camisas da seleção e bandeiras, que agora representam apenas a torcida pelo país no Mundial e não mais uma apropriação política enviesada. Ao embarcar no voo, Araújo está certo de que já venceu. Teme apenas alguma intercorrência, um passageiro que puxe o assunto, mas pretende viajar caladinho. Seu engano se mostra logo quando se acomoda e coloca as mãos na revista do avião, com uma reportagem de capa em que diversas personalidades elegem cada um sua melhor Seleção Brasileira de todos os tempos.

Araújo sabe que toda lista é polêmica, mas naquela reportagem, os mais citados nas listas aparecem numa "Seleção Brasileira de todos os tempos" eleita pela média dos entrevistados. Por isso a primeira dor no peito foi tão forte. Será que todos os avaliadores haviam sido influenciados pela televisão? E aqui não é um saudosismo de achar que o eleito precisa ser Félix. Araújo nem sentiu o aperto quando viu Cafu tomar o lugar de Carlos Alberto Torres, pois também foi um grande lateral, mas sem contar com Félix, vê Dida e até São Marcos maiores que Taffarel para a vaga de melhor no gol.

Do resto da lista, muito do mesmo com Pelé, Ronaldo Fenômeno, Garrincha e Zico presentes, tudo dentro da lógica. Mas a dor maior estava por vir. O grito foi tamanho que o piloto saiu da cabine para ver o que acontecia. Araújo está estatelado no corredor. Com as mãos amassando a revista e pressionando o peito, braveja: — Onde já se viu um homem que chora feito menino quando o país precisa dele? Não inspira confiança. Juan, sim! Thiago Silva, jamais!

Araújo se levanta com dificuldade e retoma seu lugar no assento do corredor. Faz de conta que nada aconteceu, desamassa a revista e retoma a leitura. Aos poucos a dor vai passando e sua respiração volta ao normal. O alento foi Neymar ter ficado de fora.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 25 de novembro de 2022.