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Arma de fedor

publicado: 25/07/2022 11h59, última modificação: 25/07/2022 11h59

por Felipe Gesteira*

A arma preferida das crianças do bairro no período carnavalesco era bastante simples de se fabricar. Bastava um cano de pvc da grossura da boca de um garrafão de água mineral, um cabo de vassoura, uma tampa de garrafão de água mineral e uma chinela havaiana. A tampa do garrafão se encaixava no cano, e para garantir a vedação, derretia-se a parte lateral do plástico com o fogo de um isqueiro. Depois, bastava fazer um furo na frente e estava pronta a pistola d’água que consistia em ser uma grande seringa artesanal. Para o que seria o ‘êmbolo’ da arma era preciso primeiramente serrar o cabo de vassoura ao meio; o próprio cano era usado como fôrma para cortar o círculo perfeito na havaiana e usá-lo como a borracha da seringa; por último era preciso pressionar com o cabo de vassoura o círculo de borracha até que ele ficasse bem preso. Agora sim a arma estava completa. 

Diante da convocatória para aquele Carnaval, Adones anotou mentalmente tudo o que seria preciso para construir a arma que usaria em sua estreia naquela brincadeira que ele mal sabia do que se tratava. Os meninos não explicaram direito, disseram só que iria ser divertido e que não machucariam ninguém. No dia combinado, ele levou todos os itens, montou sua arma e perguntou de onde pegariam água para carregar as novíssimas ‘pistolas’.

— Água? — respondeu Reginaldo, o mais velho da turma, em tom de deboche. — Água não fede! — completou.

Reginaldo acumulava ao menos dois carnavais a mais de experiência. Não era muita coisa além dos outros, mas na adolescência, a diferença de idades entre quem tem 13 anos e quem tem 11 parece equivaler a uma década na vida adulta. 

Cada integrante da turma do bairro levou a um grande balde vazio sua contribuição de líquido fedorento. Água de planta, óleo de motor, chorume. De tudo o que fedia havia ali um pouco. Adones percebeu que outros meninos não haviam levado coisa alguma e então perguntou como iriam contribuir. 

— Mija dentro — respondeu Reginaldo. 

Com armas devidamente carregadas, todos iam até a esquina para disparar seus jatos fedorentos contra o primeiro ônibus que passasse. Considerado por muitos como ato de vandalismo, a brincadeira era uma reação às empresas que exploravam trabalhadores e estudantes com altos preços de passagem e péssima prestação de serviço. Quem ia dentro desse ônibus durante o carnaval tinha que suportar o habitual desconforto acrescido de mais calor por conta das janelas fechadas para proteger os passageiros dos jatos de fedor.

Adones lembrou desse período da infância quando seu grupo de torcedores do Sport se organizava para atacar o técnico do time dentro da Ilha do Retiro, na partida em casa contra o lanterna da competição. A raiva do treinador se dava porque ele mal chegara e, menos de um mês depois, aceitou a oferta para treinar o Santos. A torcida, apesar de ordeira, não iria deixar barato. Planejaram atacá-lo, mas sem causar danos à integridade física, só à honra. O plano era cada um levar um saco plástico, urinar dentro e arremessar contra o ‘professor’.

Foi aí que surgiu a memória da infância. Ele logo viu o risco de que nenhuma das bombas de xixi atingisse o malogrado. Escamoteou sua arma na perna da calça e conseguiu entrar no estádio devidamente instrumentado. Diante da falta de munição tão potente quanto aquela usada quando tinha 11 anos, fez-se valer da mais pura urina. No meio daquele jogo desastroso, atrás do fosso que separava a área técnica da arquibancada, Adones mijou no técnico. 

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 22 de julho de 2022.