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Armarinho

publicado: 21/07/2023 11h44, última modificação: 21/07/2023 11h44

por Felipe Gesteira*

Jesus jogava futebol todo domingo, religiosamente. Filho de pais extremamente tementes a Deus, foi batizado assim porque seu genitor fizera uma promessa de que caso o filho nascesse saudável, largaria a cerveja. Assim foi, e a mãe, ao se ver liberta do mal que o alcoolismo causava à família, disse que o menino só poderia ser o salvador. Apesar do registro e dos muitos incentivos ao longo da vida para que seguisse a fé cristã, a única ligação dele com a religião era seu nome mesmo. Achava bonita a relação com o divino, mas para ele, queria não. Sem saber que se tratava de um ateu, Alaíde apaixonou-se por Jesus desde o momento em que ouviu sua graça. Ao conhecer a família do rapaz, ouviu da sogra certo deboche sobre o que acontecera para que a moça com aquele terço tão bonito caísse na conversa de um homem que desacredita no filho do Pai. Como caída a jovem já estava, casaram-se e tiveram um menino.

Sagrado para Jesus era o futebol, e todo domingo, enquanto Alaíde levava o pequeno Lucas à missa, Jesus jogava bola. A divisão das agendas funcionou até que o menino decidiu seguir os passos do pai e se rebelar da sina religiosa. A mãe não abria mão de ir à igreja, e logo Jesus viu sua pelada sob forte ameaça. Mas como não seria o primeiro da turma a deixar a cria na beira do campo, havia esperança. 

O problema é que Luquinhas também não gostava de futebol.

No primeiro dia de jogo foi resmungando o caminho inteiro, não queria a igreja, tampouco o campo. Queria ficar em casa brincando, fosse com o pai ou a mãe, contanto que a programação pudesse ser voltada para ele, e não ser levado a reboque na agenda dos adultos. O pai não via saída, levou pro jogo assim mesmo, insistindo que ele se juntaria aos outros meninos e seria divertido. Entediado, Lucas se frustrou e chorou. O lamento do filho desconcentrava o pai, que não acertava nem mais um passe e logo correu pra dar colo ao pequeno. 

Na semana seguinte, após novo impasse, Alaíde foi irredutível sobre a inviabilidade de faltar à missa. Jesus teve a ideia de comprar o menino com um brinquedo, assim conseguiria jogar bola e divertir seu filho. No caminho para a pelada, parou no armarinho do bairro. O estabelecimento encheu os olhos da criança. Aberto inicialmente para vender linhas, agulhas e demais artigos para costura, lá se encontrava de tudo, inclusive jogos de tabuleiro. Lucas nem quis saber de boneco, caminhão ou pião, logo foi para as caixas procurar por diversão como nunca antes havia encontrado. Por acreditar que os filhos dos colegas, aficionados por futebol, não se interessariam em ajuntar, Jesus comprou um jogo no qual o filho pudesse brincar sozinho. Consistia em um tabuleiro em forma de cruz, cheio de furos, cada qual com sua peça, e uma pulava sobre outra, eliminando-a, até que só restasse a última. “Resta um”, o nome do jogo. E Jesus, que fazia piadas consigo, pensou: “a salvação, se der certo, terá vindo em forma de cruz!”.

Que futebol, que nada! As crianças naquele dia ficaram fascinadas foi pelo jogo que Lucas levou. A paz reinou na beira do campo, Jesus marcou de cabeça e dedicou o gol ao filho, que não viu nada, pois estava ocupado demais disputando quem terminava o “Resta um” em menos tempo. Certo de que aquela foi uma boa ideia, uma vez por mês o pai levava o menino ao armarinho para adquirir um jogo novo, e a cada ida, juntos, escolhiam a opção que pudesse envolver mais crianças. Damas, ludo, banco imobiliário, foram muitos jogos ao longo de um ano.

Já adulto e agora também pai de família, Lucas lembra com saudade da ida ao armarinho, do encanto ao se deparar com tantas opções, das caixas ainda lacradas com plástico fininho, de escolher o brinquedo do dia e sair de lá com ele em mãos, rumo à diversão. Queria ter com o filho vivência semelhante àquela com seu pai. Procurou pela cidade, andou de carro por diversos bairros, recorreu à internet, nada. Encontrou diversas lojas com vendas a jato de itens similares, entrega grátis, descontos inacreditáveis, compra com um clique, mas armarinho, tinha não.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 21 de julho de 2023.