Notícias

Arte suave

publicado: 25/02/2022 08h00, última modificação: 02/03/2022 09h28

por Felipe Gesteira*


Fabrício precisava mostrar a todos que era o mais forte do grupo. A virilidade do adolescente prestes a entrar na juventude tinha a ver com aceitação, brio, traumas de infância a serem superados e uma criação dura por parte do pai, que sempre lhe impunha a obrigação de ser o “homem da casa”. Quando o menino naturalmente se comportava como criança, era tratado aos tapas.

Foi nas artes marciais que Fabrício encontrou a força que buscava. Caiu por falta de sorte em uma academia que ensinava rapazes a serem fortes, mas não de caráter ou de espírito, como pregam as filosofias orientais e os mestres mais antigos que começaram a ensinar essas lutas. A lei ensinada era outra: tratavam meninos como animais que precisam fazer uso da violência para dominar territórios. 

O garoto aprendeu a brigar na rua, bater nos outros, impor técnica e força física para conquistar prestígio a partir do medo que poderia causar. “Respeito”, ele dizia, do alto da imaturidade juvenil de quem não percebe que o homem violento torna-se com o tempo o menos admirado.

Na escola, último ano antes do vestibular, Fabrício era quem mandava. O ‘líder’ dos meninos, o bravo a ser seguido. Típico fracote oprimido por uma educação patriarcal e machista que agora busca vingança sendo opressor de tudo e todos. Ele era o dono da bola até o meio do ano, quando Anderson se matriculou em sua turma. Correu o boato que o novato era bom de briga, pois praticava artes marciais há pelo menos três vezes o tempo em que Fabrício começara a lutar. 

O grande problema é que Anderson não buscava tomar posto algum. Não percebia as encaradas, não reagia às provocações. Até quando se esbarravam no corredor o aluno recém-chegado pedia desculpas, entendendo que havia sido um acidente. Aquilo corroía Fabrício. O não agir de seu oponente colocava em prática o ditado de que “quando um não quer, dois não brigam”. Mas dessa forma, a medição de força sonhada por Fabrício não ocorria e, no imaginário popular, já havia um vencedor, tamanha a tranquilidade do oponente. 

Era preciso tirar a prova fora da escola, só os dois, uma disputa ‘entre homens’. 

Fabrício descobriu onde Anderson morava e esperou para cruzar com ele fora de sua casa. A tocaia durou metade de um dia de sábado. No meio da rua, somente eles, Anderson se surpreendeu, cumprimentou, e logo foi cortado. 

— Tu num diz que sabe lutar? A gente vai tirar a prova agora pra ver quem luta melhor! — disse Fabrício.

— E precisa provar? Olha, se for por isso quem luta melhor é você, e fiquemos assim mesmo. — Respondeu Anderson, tentando pacificar a história.

A conversa durou 20 minutos. Foi respeitosa, elogiosa, e no fim não brigaram. 

Na escola, os esbarrões e encaradas de um só lado foram trocados por acenos mútuos. Os dois conviviam bem. Nos jogos internos, inscreveram Anderson para competir no judô sem que ele nunca tivesse lutado no chão. A desculpa era que na sua faixa de peso não teria outro competidor, e com a conquista a mais garantida por WO, o somatório de medalhas colocaria a turma em vantagem.

Uma regra foi improvisada na hora da competição. Inventaram a categoria “absoluto”, na qual todos lutariam. E aí, sim, os dois lutadores da escola iriam se enfrentar, sob as regras em que Fabrício era mais habituado. 

No início da luta, Fabrício chegou no ouvido de Anderson e perguntou como seria. Seu novo amigo respondeu que não tinha interesse e que ele poderia vencer. Era a oportunidade de mostrar força, deixar de lado a diplomacia e machucar. Mas, não. Fabrício esqueceu toda a violência que lhe fora ensinada e rendeu-se à arte suave. Aplicou o fair play, venceu com delicadeza e preservou a amizade. 

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 25 de fevereiro de 2022.