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Barco sofredor

publicado: 12/11/2021 08h00, última modificação: 12/11/2021 10h15

por Felipe Gesteira**


Aconteceu numa tarde, em pleno sábado. O jovem confirmou que não havia mais chances para sua história de amor. Nos últimos meses, era unilateral. Sua então namorada havia tentado encerrar por diversas vezes. Dizia que não o amava. Ele insistia. Até que, separados, ela revelou a paixão por outra pessoa. Poupando-o de todos os motivos, disse apenas que seu novo amor a deixava ser quem ela era, sem tentar controlar sua vida. Ele caiu em si. Destituído de qualquer esperança, resolveu afogar a dor na mesa do bar.

Não há ambiente mais democrático que o bar, seja para sofrer ou festejar. Para os que sofrem, o amparo dado pelo garçom, treinado para questões de amor, é quase um colo. E se a ferida é boa, há até quem se aprochegue, mesmo desconhecido. 

Aquele não era um bar qualquer, pois a simbologia do boteco que se situa numa avenida chamada Esperança é capaz de mover o universo em torno daqueles que creem na boemia como instituição sagrada. 

Enquanto uns roíam a dor de um amor perdido, faltavam unhas a se roer na mesa ao lado. Pai e filha, torcedores do Botafogo da Paraíba, aguardavam de frente para a TV o time entrar em campo para a partida mais importante do ano, aquela que poderia garantir o acesso à tão sonhada Série B do Brasileirão. 

Time já no gramado para o aquecimento, chega o garçom. Após servir mais uma dose para o jovem desamparado e seu novo amigo na mesa ao lado, pede licença para tirar o volume da televisão, pois a cantora de forró começaria seu show com o marido, que comandava os teclados. Pai e filha concordam, prontos para sofrer em silêncio absoluto.

Fiz você pra mim, meu brinquedo, meu anjo querubim
Meu segredo guardado só pra mim, meu amor mais louco*

Bastou a dupla começar a tocar para se ouvir um grito vindo da mesa mais animada do bar. Três amigas celebravam o aniversário de uma delas, ao mesmo tempo em que vibravam por tão rara saída, a primeira sem seus filhos em anos de dedicação exclusiva à maternidade. Lindas, leves, com as crias sendo devidamente cuidadas pelos pais. “Uhuuuul!”, disseram as três, mais um amigo que estava junto, porém sequer sabia dançar. A agitação foi logo no início daquela música que para muitos é considerada um hino do Nordeste. 

Comprei sururu, camarão, fiz batida de caju
Dancei rumba e até maracatu, pra te fazer feliz

O mesmo bar onde se chorava por desamor havia sido cenário para o início de muitas histórias de amor. Mas naquela tarde, a esperança de pai e filha alvinegros da estrela vermelha se findava em seu próprio jogo. A derrota acachapante para o Ituano fazia com que a decisão ficasse por conta de outra partida. O controle estava perdido. 

E você não gosta mais de mim
Vem dizer que eu não soube dar amor

Na mesa do rapaz que fora por bom motivo trocado, um chegado, mais experiente, dizia para o jovem que há males do amor piores do que aquele ali. “Mas tudo dói, é fato”, admitia o companheiro de copo.

E achar que a vida é mesmo assim
Cada um leva um barco sofredor

Os corações da torcida pessoense sintonizavam suas vibrações em Belém. Jogando em casa, o Paysandu já sem chances de mais nada precisava vencer o Criciúma para manter acesa a chama do Belo. Mas foi o time de Santa Catarina o vencedor, colocando água no chope do pai, da filha e de mais da metade de toda João Pessoa. O forró continuava a tocar em meio à alegria de quem só queria dançar forró, de quem chorava por um amor perdido, e da torcida que sofria pelo sonho adiado.

Meu baião, coração
Arranca essa dor do meu peito, pra eu não chorar

*Trechos em itálico são integrantes da letra da música Anjo Querubim, de autoria de Petrúcio Amorim

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 12 de novembro de 2021.