Notícias

Bicicleta

publicado: 15/07/2022 09h33, última modificação: 15/07/2022 09h33

por Felipe Gesteira*

A sonhada parábola perfeita havia sido alcançada em uma partida oficial. Com o vértice atingido exatamente na posição em que estava o sol, a bola formava momentaneamente um eclipse, obrigando todas as jogadoras na pequena área a dilatar e contrair novamente suas pupilas quando a trajetória começava a seguir seu curso de queda. Janaína não se encandeou, sequer piscou. A jogada ensaiada centenas de vezes permitia que ela conseguisse executar o arremate até de olhos fechados. A curva impecável entre a subida e a descida da bola era uma habilidade peculiar de sua parceira de time. Só o sol que não estava nos planos, mas veio a calhar como uma sorte de campeã para aquela final. Ela dá as costas para o gol pouco preocupada com quem está atrás a defender, salta, pedala no momento exato e desfere o chute da bicicleta, mandando a bola no ângulo superior da goleira, indefensável, impossível, incontestável…

— Manhêêêêê, faz minha vitamina! — grita sua menina mais nova, da cozinha.

Janaína levanta em sobressalto ao perceber que não acordou com o toque do despertador. Ainda na cama está o tablet que ela usa para assistir aos jogos de craques da Seleção e tomar como inspiração. A filha mais velha sai do banho, pois já consegue se virar sozinha até certo ponto, enquanto a pequena revira a cozinha ameaçando ligar o liquidificador, num ímpeto que mistura desobediência, provocação e a tentativa de descobrir o quanto pode ser independente.

“Mãe” é o nome mais doce na boca das pequenas. Se Janaína recebesse um centavo a cada vez que a palavra fosse pronunciada, nem precisaria mais trabalhar. Viveria de renda e poderia usar todo o seu tempo livre para jogar futebol de areia. 

É verdade que em algum momento da adolescência ela sonhou em ser atleta profissional. A vida lhe deu outros rumos. Hoje encontra a plenitude quando consegue terminar todas as demandas do dia e chegar inteira ao treino na quadra de areia da praça em frente à sua casa. Na teoria, basta atravessar a rua, mas nem sempre funciona. A lida de cuidar sozinha das crianças muitas vezes a coloca a assistir aos treinos da varanda, com as mãos na tela de proteção. 

Enquanto colocava duas bananas, leite, achocolatado e gelo no copo do liquidificador, Janaína planejava milimetricamente seu dia para chegar à noite com tudo tranquilo, ainda considerando o tempo de trânsito em todos os trajetos: deixar as filhas na escola às 7h, ir trabalhar, buscar ao meio-dia, descongelar o almoço, arrumar para sair novamente, deixar na natação, depois levar para brincar na praça, cansá-las bastante, torcer para dar tudo certo, voltar pra casa, trocar de roupa e, por fim, atravessar a rua novamente, com as meninas a tiracolo, sendo elas as melhores parceiras de treino. 

Tudo parecia se encaixar naquela quinta-feira para uma noite de paz. Nem problema de trânsito, querela com vizinho fofoqueiro, menina com febre, arenga no carro, nada atrapalhava. Na hora da partida amistosa, as crianças se comportavam quase como torcedoras da mãe que estava com a gana de desequilibrar a disputa. Enquanto brincavam na beira da quadra, as pequenas assistiam como podiam.

A bola então subiu. A cena era um déjà vu do sonho que tivera mais cedo. Na parábola perfeita, o vértice fora alcançado quando a bola encobriu a lâmpada do poste. Janaína deu as costas às adversárias, pulou no tempo certo, preparou-se para pedalar e parou no ar quando ouviu o grito misturado com choro, atiçado por um puxão de cabelo, que quase lhe tirou a concentração do gol. 

— Manhêêêêêêê!

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 15 de julho de 2022.