por Felipe Gesteira*
— Mas onde já se viu assistir a um Botauto pela televisão? É Botauto, menino! Num é qualquer coisa, não. É o jogo do ano!
E assim Zé Antônio tentava enfiar na cabeça de seu filho Miguel, de 18 anos, torcedor do Auto Esporte desde criança, que não fazia sentido algum assistir ao clássico pela TV. Ainda mais porque nem TV de fato era. O jogo seria transmitido via streaming, o que segundo Miguel era a mesma coisa que TV, só que como uma Netflix ou YouTube. O pai estava tão indignado, ansioso, em êxtase pela iminente vitória no primeiro clássico do ano, que nem conseguia conter a frustração de não ir ao estádio. O filho, por outro lado, tentava explicar que são novos tempos, que hoje em dia se vê futebol assim, que assiste à Champions assim.
— Me respeite! Danado de Champions! — retrucava Zé Antônio.
O pai era torcedor do tipo bruto, daquele que nem aceita ter segundo time do Rio ou de São Paulo, tampouco essa história de ‘parceria’ alvirrubra, de chegar no Recife e torcer pelo Náutico. Nada disso. Zé Antônio era torcedor do Auto Esporte e ponto final. Como sempre levara o filho Miguel aos estádios, muito lhe desgostava essa postura do menino em falar que pela TV era a mesma coisa. “Não é, nunca será!”, dizia pra si enquanto bufava.
E se um Botauto por si já não é qualquer coisa, aquele então era de revirar os torcedores históricos. A partida representava a volta do Macaco Autino à primeira divisão do estadual, o retorno do clássico após dois anos de pandemia, e o confronto contra um Botafogo que agora se acha o maior da Paraíba, tanto que sua torcida vem fazendo pouco caso com o maior rival da capital. O jogo tinha tudo para ser um grande “cala-boca” na turma da estrela vermelha.
Com tantos motivos para ir ao estádio, Zé Antônio tinha apenas um para não ir: ele acabara de se recuperar de um infarto. Escapou por uma peínha, como diria seu pai, o velho Arnóbio. Ainda estava em estado de repouso absoluto, e apesar da recomendação médica de evitar fortes emoções, ele disse que preferia morrer do que perder o jogo. Após duras negociações dentro de casa, com risco até de fuga do enfermo, todos concordaram que Zé Antônio poderia assistir pela TV.
Tudo pronto para o início da partida. Bandeiras e flâmulas devidamente afixadas, pai e filho uniformizados aguardando o apito inicial.
— Só falta cair a internet — bravejou Zé Antônio.
Mas foi dito e feito! Parecia praga. Ele riu, e imediatamente se aperreou ao perceber o tamanho do problema. — Pra que fosse falar, painho? — lamentava Miguel, catucando o fio e tentando reiniciar o modem. Foi uma demora de lascar até conseguir restabelecer o sinal. Quando a imagem voltou, já no segundo tempo, o jogo estava 2 a 0 pro Auto. Se estivesse entrando atrasado no Almeidão por culpa de alguém, Zé Antônio ficaria muito bravo por ter perdido duas vezes a cara de humilhação do adversário, que a partir dali precisaria descer do salto. Em vez da chateação, ele abriu um sorriso bobo. Feliz por estar ao lado do filho, feliz pela vantagem de dois gols, que ele acreditava ser irreversível, tamanho era o seu otimismo. Zé Antônio estava feliz por estar vivo após ter chegado tão pertinho da linha que separa vida e morte.
Aos 44 minutos da etapa final, a internet cai de novo. Miguel levanta afoito para arrumar, e seu pai, cansado, em cima de uma cama e ainda olhando para a imagem paralisada da TV, o tranquiliza: — Deixa, filho. Tá bom já, esse Botauto a gente não perde. — e em seguida se vira para dormir. Zé Antônio não viu os gols do seu time, mas também não viu o Botafogo empatar aos 45 e 49 do segundo tempo. Seu coração alvirrubro, já tão sofrido, foi duplamente poupado.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 25 de março de 2022.