por Felipe Gesteira*
Chegou até o ouvido de Antônio a fama do poderoso caderno de oração de Dona Berenice, avó de Tiago, amigo de João Pessoa que ele encontrava uma vez por ano, no veraneio em Jacumã, lá no paradisíaco Litoral Sul da Paraíba, onde os meninos, despreocupados das contas que os pais tinham a pagar, se reuniam para jogar bola na hora da maré baixa.
No fim da pelada começou a conversa sobre religião. Os meninos disputavam para ver quem tinha um familiar mais íntimo de Deus. A cada relato aparecia um mais santo que o outro. Se o papa caísse no centro daquela roda teria que canonizar a parentada toda, com tantas histórias de milagres, até que chegou a vez da avó de Tiago, a evangélica Dona Berenice.
— Vocês estão contando que fulano e beltrano pedem a Deus por uma graça específica, estão por fora da minha avó. Ela escreve só o nome da pessoa num caderno lá e pronto, é só esperar — disse Tiago, se gabando todo.
— E como faz pra alcançar a graça sem fazer o pedido? — perguntou um curioso.
— Ela diz que se Deus sabe de tudo, já sabe o problema da pessoa, por isso não precisa escrever mais nada. Deus é quem sabe.
Ao ouvir essa conversa, Antônio viu a oportunidade de pedir oração por seu time, o Campinense. Ele tinha vergonha de interceder junto a seus familiares, ou mesmo ao padre da igreja, por motivos futebolísticos. Ao mesmo tempo, não aguentava mais a zoação dos amigos trezeanos após a ascensão e queda da Série B. Queria um título nas mãos para chamar de seu, e se a questão mexia com seu íntimo, por que não envolver o divino? Com Dona Berenice a discrição seria total, e aí ele logo inventou uma desculpa para almoçar na casa de Tiago quando o verão passasse, pois a senhorinha não ia a Jacumã com o resto da família para não se distanciar de sua igreja.
Meses depois, lá estavam Antônio e Tiago almoçando em João Pessoa. Dona Berenice, na cabeceira da mesa, apenas ouvia, quando Antônio começou a dizer que estava com um problema que só Deus podia resolver. A matriarca arregalou os olhos como se fosse chamada à conversa.
— Diga o que é meu filho, que eu oro por você.
Nervoso, Antônio começou a gaguejar, e com medo de ser descoberto, chorou. Aquele choro de quem está prestes a ser pego numa mentira, Dona Berenice leu como aperreio grande, de problema sem solução, de doença sem cura, ou algo até mais grave.
— Precisa dizer o que é não, Deus sabe de tudo. Fale só seu nome que eu coloco no meu caderno de oração.
Parecia que o plano havia dado certo. Após anotar o nome completo de Antônio, apresentar a Deus e fechar o caderno, o menino respirou aliviado, até que Dona Berenice entregou-lhe uma obrigação para aquela mesma noite.
— Hoje é dia de culto de libertação na minha igreja. Aproveite que está aqui em João Pessoa e vamos juntos.
Tiago riu, Antônio gelou. Não tinha como negar. Fora quase intimado. À noite, lá estava ele, crente que bastaria pensar no problema da falta de títulos da Raposa e tudo estaria resolvido. Um cochicho de Dona Berenice com o pastor e logo o líder religioso chama atenção de toda a igreja.
— Estamos aqui com um jovem, o problema dele é tão grave que mal consegue falar a respeito. Venha aqui à frente, querido.
Antônio nem conseguia andar de tão nervoso. Quando pegou no microfone, disse algo ininteligível. Logo alguém gritou do meio da multidão: — Ele está falando em línguas!
A igreja veio abaixo em êxtase, súplicas e vibrações pela graça a ser alcançada. Antônio, de tão nervoso e com medo de que o motivo viesse à tona, se borrou todo.
Um mês depois, o Campinense venceu a Copa do Nordeste. Foi Deus na vida de Antônio? A resposta ele nunca terá. Certo é que após a incalculável felicidade com o título, alegria de não caber no peito e conquista palpável para passar na cara dos rivais galistas, o bom raposeiro decidiu que outro aperreio dentro de igreja jamais passaria e prometeu nunca mais misturar futebol com religião.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 14 de outubro de 2022.