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Cana com aperto de mão

publicado: 20/05/2022 08h00, última modificação: 03/06/2022 11h50

por Felipe Gesteira*

Seria um sonho colocar um pequeno município do interior da Paraíba na rota dos eventos esportivos internacionais? O que para muitos era deslumbre, tornou-se meta de vida do prefeito daquela pacata cidade na região do Brejo da Paraíba, tradicional pela produção de cachaça, mas sempre engolida pelas vizinhas maiores, já reconhecidas como grandes produtoras desta iguaria que é quase divina para quem a degusta. 

Pegando carona na ideia de uma corrida de rua que conheceu na capital, o bendito prefeito resolveu adaptar. A festa de origem era uma competição entre corredores, onde a cada volta de 1 quilômetro, o atleta deveria tomar uma caneca de chope. O prefeito, que se considera um visionário, pensou que onde cabe cerveja, cabe também a cachaça. E assim seria na sua cidade, uma carreira, um gole de cana e uma pontinha de abacaxi ou rapadura, pra manter a glicose do desportista em ordem.

Quem não gostou da ideia foi Odésio, tão habitual frequentador do Bar do Paiva que há quem confunda se ele é funcionário, frequentador, sócio ou inquilino do local. O homem que aprecia cachaça todos os dias de forma lenta, quase ritualística, ficou acabrunhado logo que soube do grande evento que viria para a cidade. 

— Cachaça num é bagunça não, meu irmão! Vão vir aqui beber de todo jeito, derramar no chão feito quem joga aqueles copos de água mineral. Num vê na São Silvestre aquele monte de copo no chão? Se alguém jogar uma dose de cana no mato, sem ao menos oferecer a um santo, vai ser mesmo que me matar!

De certa forma Odésio estava certo. A proposta do evento não era para que ninguém viesse apreciar lentamente as cachaças da região. Degustar então, jamais. Era pra beber rápido mesmo, se embriagar e, apesar disso, continuar a corrida até onde fosse possível. Seria de fato uma grande brincadeira, um evento turístico, mas que confrontava tudo o que para os grandes apreciadores do destilado de cana de açúcar era sagrado. 

A tristeza de Odésio era tanta que nos dias que antecederam a organização do evento ele mal conseguia levantar o copo. Os habituais brindes para café da manhã, lanche, aperitivo do almoço, café das três, chá da tarde, pré e pós jantar e ainda a caninha da ceia, tudo isso estava comprometido devido ao banzo absoluto instalado naquele corpo de boemia onde antes habitava apenas a alegria. 

Odésio enfim resolveu reagir. A quinze dias da competição, prometeu fazer jejum e oração. Mas o sacrifício seria só com os alimentos, pois tirar-lhe a cachaça seria grave demais até para um pedido ao divino. E se para rezar a todos os santos o homem abriu mão do pão, sua bebida não poderia mais vir acompanhada de tira-gosto. Passou a partir dali a tomar cana com aperto de mão. 

Mais tradicional até do que amendoim, abacaxi, caju, ou até mesmo a ciriguela passada de boca em boca entre os bêbados na ausência de mesa farta, o aperto de mão como acompanhamento remonta à origem da boemia e da escassez de bens diante de abundante alegria. O clássico ‘tira-gosto’ consiste em cada comparsa virar seu copo de cachaça e, imediatamente, enquanto o gole ainda desce, desferir um vigoroso aperto de mão, desses de trincar o antebraço e contrair o cotovelo. 

Até o dia da corrida Odésio fez larga campanha na cidade para tentar impedir a realização do evento. Se ajoelhou na porta da Prefeitura, pintou cartazes, fez o que pôde e mais um pouco. De nada adiantou. A prova aconteceu, foi um sucesso de público, com direito a cobertura da mídia e destaque em todos os telejornais nacionais. Mas como Odésio havia previsto, foi grande o desperdício de cachaça. Ruas foram lavadas a ponto de deixar no ar o cheiro adocicado da bebida. Odésio não resistiu a assistir às cenas e perdeu as forças que lhe restavam. No dia seguinte foi confirmado o óbito. Por toda a cidade diziam que ele morrera de cachaça, burrice ou magreza, mas a causa confirmada pelo legista diante de um fígado tão puro foi mesmo desgosto. Desde então, instituiu-se como lei municipal a proibição de servir para não beber e o reconhecimento como patrimônio imaterial a cana com aperto de mão. 

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 20 de maio de 2022.