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Carro de boleiro

publicado: 17/11/2023 11h11, última modificação: 17/11/2023 11h11

por Felipe Gesteira*

No cardápio do lanche tinha biscoito 3 de maio assado na frigideira com manteiga de garrafa, sanduíche de cream cracker Fortaleza recheado com goiabada Tambaú, sorda Perilima, bolacha rainha comprada na padaria Flor das Neves, bolo de formigueiro e ainda duas opções de suco: mangaba e graviola. Na sala da casa de Flavinho, à espera do banquete proporcionado pela avó todos os domingos pela manhã, após o primeiro horário da pelada, as crianças esperavam assistindo ao programa semanal de TV que trazia curiosidades do universo do futebol e despertava a atenção dos meninos e meninas, ainda ofegantes pelo jogo de bola que há pouco se encerrara. Na tela, a reportagem que não mudaria absolutamente nada na vida de ninguém: um ranking composto pelos principais jogadores e seus carros esportivos.

Dona Mércia espalha as bandejas com biscoitos, doces, bolo fatiado, mais algumas torradas, tudo no centro do tapete redondo e volta para buscar as duas jarras de suco. Eles se organizam pelo chão da sala e começam a comer praticamente sem tirar os olhos da tevê. Fascinados pelos atletas de ponta, vislumbram aquele estilo de vida como se fosse algo inerente à profissão. Dos que estão sentados não há um que não sonhe se tornar craque em um grande clube. A mídia corrobora na construção do mito em torno do sucesso, das posses, do luxo acima das conquistas, de que só é craque de verdade quem alcança aquele patamar de poderio financeiro.

Karim Benzema, que fez história no Real Madrid e na seleção francesa, possui um Bugatti Chiron, carro superesportivo que custa mais de 15 milhões de reais. – Quantas casas dá pra comprar com o dinheiro de um só carro? – balbucia Dona Mércia, enquanto serve o suco nos copos dos meninos. A lista segue com diversos atletas de grandes clubes e seleções. Carros caríssimos e com nomes estrambólicos pipocam na lista de posses. Se Cristiano Ronaldo e Lionel Messi não estivessem na lista dos esbanjadores, daria para dizer que aqueles mais se importam com o que compram do que com os feitos em campo, mas como os maiores de todos os tempos também aderiram à exibição por meio do poder aquisitivo, fica a impressão para quem assiste que é mesmo preciso ter para se firmar no meio. Dos carros de Cristiano Ronaldo, somente seu Bugatti Centodieci custou mais de 47 milhões de reais; Messi, novamente eleito melhor do mundo, já desembolsou mais de R$ 165 milhões em um modelo histórico de Ferrari.

Os jogadores brasileiros não ficam para trás. Neymar, que já não está mais no auge da carreira e hoje luta para voltar a jogar, possui um Maserati MC12 que custou mais de R$ 11 milhões e faz de 0 a 100 km/h em menos de 4s. Dona Mércia, plantadana frente da TV segurando as jarras de suco, agora vazias, perguntava pra que essa velocidade toda. Flavinho reclamou que a reportagem só falava de jogadores fora do Brasil, até que entrou a coleção todinha de carros do paraibano Hulk, deixando todos vidrados, e seguindo para outros atletas que atuam no Brasileirão. Tal como lá fora, as vaidades aqui são alimentadas da mesma forma, com Ferrari, Porsche, Lamborghini e tudo mais o que o dinheiro possa comprar.

Quando termina o programa, a brincadeira é se identificar com os atletas e seus carros. Filho de um casal de feirantes, Flavinho ficou encantado ao descobrir que Luciano, atacante do São Paulo, mesmo podendo ter um carro de mais de milhão como outros do mesmo time, possui uma Saveiro, assim como seu pai.

– Desses aí sou Luciano – disse Flavinho.

– E essa Saveiro? – questionou um do meninos que estava na dúvida entre Neymar e Cristiano Ronaldo.

– Igual à daqui de casa e ainda terminou o ano campeão.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 17 de novembro de 2023