– Balãozinho, é o seguinte. Tu vai tomar um cartão amarelo no segundo tempo. E nem invente de dar pra trás, já deixei o envelope com dez mil na sua casa.
O áudio enviado para o telefone celular do jovem lateral fez com que seu sangue parasse de circular, deixando-o sem cor. Obviamente a circulação sanguínea não parou, mas era essa a sensação enquanto ouvia o que dizia um ‘investidor’ desses esquemas de apostas esportivas. Balãozinho sentia um mal-estar indescritível, como se também o tempo e o espaço estivessem suspensos e ele assistisse de fora do corpo ao desenrolar de um pesadelo.
A primeira coisa que se perguntou foi “por que eu?” Um menino que sequer costumava marcar falta, visto que jogava mais de ponta. Além do mais, mal voltava para apoiar o time na marcação e por isso ouvia tanta reclamação do treinador. Mais fácil para essa empreitada seria cooptar um zagueiro, já que eles vivem mesmo se trombando com os atacantes, a desculpa para tomar um cartão já estaria dada, pensou.
Naquele ano Balãozinho estreava como jogador profissional. Tudo bem que era um time fora até da Série D do Brasileirão. Pelo estadual, a equipe entrava na última rodada como lanterna, na disputa contra o vice-lanterna, em um jogo que visto como “dos desesperados”, já que ambos tinham chance de fugir da degola tamanho era o acirramento na parte de baixo da tabela. O lateral que havia sido promovido a profissional no meio do campeonato ganhara a vaga de titular somente porque o dono da posição estava machucado. O mais interessante na trajetória de Balãozinho para aquela última rodada que poderia definir os destinos dos times no ano seguinte era que ele vinha das categorias de base do adversário, portanto, teria vários ex-colegas do lado oposto do campo.
A expectativa era grande para a atuação do jovem lateral. Era filho de Balão, jogador que foi consagrado na mesma posição e ficou famoso tanto pelos chapéus que dava nos adversários como por chamar todo mundo de “balão”, até que o apelido pegou de volta. Além da habilidade, ficou conhecido por sua honestidade, dentro e fora de campo.
Balãozinho não conseguia dormir nos dias que antecediam o jogo. Pensava no desgosto que o pai teria se soubesse, na carreira ser arruinada caso alguém pegasse aquela armação, e lamentava a tragédia por ter sido escolhido sem que lhe fosse dada a oportunidade de aceitar ou negar. Foram os meninos do bairro, que cresceram com ele, mas tomaram um rumo na vida diferente do esporte, trabalho ou estudos. Eles sabiam que as contas em casa não fechavam desde que Seu Balão havia morrido, e até que o salário de jogador do filho se firmasse, ainda levaria um tempo. Sua mãe, que recebera o envelope, nem sonhava com o que continha ali. Ela se queixava das contas atrasadas, da ameaça de corte de água, da dificuldade em juntar lenha para cozinhar, já que o dinheiro há meses não dava para o botijão de gás, e das dores nas costas.
Nervoso, ele consentiu, com medo que algo pior acontecesse, mas respondeu ao mensageiro que não sabia o que fazer para tomar um cartão, pois seria o primeiro de sua carreira.
– Mete a mão na cara de qualquer um, pisa, empurra num lance sem bola, te vira! - disse o apostador.
Como a exigência era que o cartão fosse aplicado somente no segundo tempo, Balãozinho passou os primeiros 45 minutos da partida completamente travado, com receio de tomar a punição antes, acidentalmente. Tanto que só não foi substituído no intervalo porque não tinha quem ocupasse seu lugar, mas no vestiário levou carão até dos colegas.
Na segunda etapa do jogo, Balãozinho entra decidido a resolver o problema. A primeira oportunidade foi contra o lateral oposto, mas se tratava de Juninho, seu amigo de infância, e ele logo descartou. Em seguida, uma disputa de bola com Jacó, seu colega com quem dividia cocada quando saíam da escola, também não teve coragem. Logo depois, numa cobrança de falta do adversário, empurra-empurra entre vários com quem ele travava disputas de travinha no campo poeirão da frente de casa. Incomodado com a situação, Balãozinho fechou os olhos e rodou a mão na altura do rosto para acertar o primeiro que passasse perto, sem olhar a quem para não sentir culpa. Foi justo o juiz, que tentava apaziguar a situação, mas ao levar o tapa, puxou um cartão amarelo, que saiu até barato, considerando um ato “sem querer”, e logo o repreendeu: – Tá doido, menino? – E Balãozinho, ainda de olhos fechados e sem saber que havia conseguido o feito, pôs a perder na resposta que lhe rendeu o cartão vermelho: – É pela mãe!
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 12 de maio de 2023.