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Catimba é talento

publicado: 27/05/2022 08h00, última modificação: 03/06/2022 11h53

por Felipe Gesteira*

É na iminência do desastre que muito nordestino se reinventa. A percepção premonitória de que algo sairá absolutamente fora do controle é ativada sempre que o fato está prestes a acontecer da pior forma possível. O sexto sentido que não serve para antever nada relacionado a sorte, fortuna, amor, mas voltado apenas para a tendência daquilo que vai dar ruim torna-se assustadoramente preciso na vida daquele  que costuma pisar em rastro de corno. Apesar da tragédia cotidiana para quem convive com esse super poder, o alento chega na forma de preparo prévio, pois a pessoa se lasca, mas ao menos sabe que irá se lascar.

Sentado na roda de praticantes de artes marciais apenas para compor o grupo, o aluno mais novo da turma era o que tinha a forma física menos adequada para aquele tipo de esporte. No momento da exibição de técnica do professor junto ao discípulo mais velho, Tiago anteviu os dados da sorte e do azar rolando bem em sua direção. 

O lutador novato e gordinho acabara de se matricular nas aulas de artes marciais. Estava em seu primeiro mês de treinamentos, o que na verdade vinha sendo puro sofrimento em decorrência do esforço para conseguir executar o que lhe parecia impossível, somado ao bullying recorrente da turma que pouco o acolhia além da risadagem travestida de camaradagem. Tiago amargava uma série de frustrações na sua vida esportiva. Lhe faltavam espaços nas equipes de futebol da escola, na pelada no campo poeirão do bairro, no vôlei na frente de casa. Logo ele, primo de jogador de basquete e irmão da menina que arrasava em tudo nos jogos escolares, das partidas de handebol aos corações dos incautos adolescentes. Tiago acreditava que nas lutas havia encontrado sua vocação para o esporte.

Aqueles 30 dias iniciais de dores musculares e muita resiliência representavam certa esperança para o jovem. Se ele não dominava nenhum fundamento de qualquer esporte que envolvesse bolas, ali ao menos saía um chute ou outro. Nada fenomenal, não se tratava de um prodígio, mas era perceptível que, comparado ao futebol, se dava muito melhor. De cara, seus vizinhos já diziam que como driblador, Tiago era um excelente lutador. 

E se na luta ele encontrava a fuga para a falta de intimidade com a protagonista da paixão nacional, algo parecido acontecia na escola: Tiago compensava nos estudos sua inabilidade social. Era tímido de doer, apesar de romântico desde cedo. Pela ausência de coragem em chegar nas meninas, alvos de suas paixões platônicas, buscava chamar atenção sendo o melhor aluno nas matérias de exatas. O fato nunca lhe rendeu um beijo sequer das estudantes, no máximo a amizade com o professor de Física, o que para o seu objetivo era mesmo que nada. 

No dia da roda de kung fu, o professor mostrava como seus discípulos eram resistentes. Uma das demonstrações consistia em quebrar uma telha na costela do aluno e ele resistir sem nem fazer careta. Tiago teve a sensação de que iria dar merda, com o pedaço quebrado voando diretamente para o seu rosto. Os olhos dos colegas e do público, vidrados na apresentação, não perceberam que a mão do novíssimo atleta estava posta criando um escudo diante da face muito antes que de fato fosse necessário. 

Após a quebra, sua intuição se confirmou e um imenso corte se abriu em sua palma esquerda. Agora, sim, todos olharam, preocupados com tanto sangue. 

E a partir daquele dia, Tiago confirmou seu talento como atleta profissional brasileiro melhor que muito boleiro experiente. Ele aproveitou o acidente para transformar azar em sorte, sob a maestria da catimba que estava ali, como grande talento. Se alguém da turma do kung fu lhe perguntava como fez para evitar o caco de telha no rosto, ele dizia que fora puro reflexo, resultado dos treinamentos; quando lhe perguntavam na escola, respondia ter sido cálculo de trajetória. 

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 27 de maio de 2022.