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Deuses e bruxos chutam de trivela

publicado: 17/09/2021 08h00, última modificação: 17/09/2021 09h38

por Felipe Gesteira*


O 7 de setembro de 1997 mudou para sempre o destino daqueles três meninos que jogavam futebol todas as tardes, religiosamente, num campo do tipo poeirão, no bairro de Cruz das Armas. Eles não chegavam a ser ruins de bola, mas não eram os primeiros escolhidos sempre que os dois times eram tirados na rodada inicial. Lucas, Pedro e Mateus decidiram reservar a manhã do feriado escolar para treinar fundamentos. Após horas de chutes, dribles e domínios de bola, debaixo de um sol quente como só João Pessoa sabe fazer quando quer, decidiram que aquilo tudo era perda de tempo. 

Por mais que treinassem, jamais chegariam ao mesmo nível dos peladeiros consagrados. Tinha menino ali no bairro que desequilibrava uma partida mesmo que estivesse com o chamboque do dedão arrancado, unha encravada ou bicho-de-pé. 

Como não acreditavam no próprio potencial para alcançar a excelência nas mais variadas aptidões, resolveram se especializar em movimentos e posições pouco explorados.

Pedro era de todos o mais desajeitado com a bola nos pés. Decidiu naquele Dia da Independência que a partir dali não mais iria esperar o sorteio para ver quem seria o goleiro. Se anteciparia à escolha, tão preconceituosamente vista como mau agouro, oferecendo-se para defender a meta do seu time. De imediato, teria a vantagem de não esquentar o banco à espera da partida, pois em toda rodada, ganhando ou perdendo, teria sua vez garantida. 

Mateus, que já era zagueiro dos mais truculentos, botou na cabeça que seria o melhor executor de carrinhos do mundo dos campinhos de pelada. Quase um zagueiro italiano do barro de chão batido. Sempre pela frente ou pelos lados, sempre no tempo certo, na bola, e quase sempre derrubando o adversário, porém sem cometer a falta. Mateus passou a ser temido, pois quem quisesse que pulasse, ou fizesse um drible magistral. Era certo como dois e dois são quatro que, diante da bola, o carrinho viria. Sua mãe não gostou nada disso, devido às condições de suas roupas quando ele chegava em casa. E se o dano fosse apenas no vestuário, estaria de bom tamanho. Mas, não. Diferentemente da grama, no poeirão não tem apenas barro. Aquelas pedrinhas miudinhas entravam pelo calção e pela camisa e arranhavam o menino de tudo quanto era jeito. Porém, mais importante do que chegar sem arranhões era terminar o dia sem gols sofridos. 

De todos, a missão de Lucas era a mais difícil. Sonhou que se tornaria um exímio batedor de trivela e estava decidido a fazer de tudo para alcançar seu objetivo. Aquele gol espetacular do lateral-esquerdo da Seleção Brasileira, em cobrança de falta lá do meio da rua, não saía da cabeça do menino havia meses. Lucas queria mais que chutes para o gol. Decidira que só chutaria de trivela, fosse passe, tiro direto, batida de falta ou escanteio. 

Apesar de ser campo de pelada, aquele poeirão era grande o suficiente para a prática da trivela, com o fator complicante de ser relativamente próximo da avenida principal que corta o bairro inteiro. 

Mesmo com dedicação quase exclusiva em todas as suas oportunidades com a bola, chutar de trivela não é tarefa fácil. No entanto, o maior feito de Lucas não foi o domínio da técnica, mas a descoberta do ritual. 

Todas as vezes em que um jogador assume o risco de puxar a bola para o lado oposto ao exigido para o domínio que precede o chute natural e resolve bater com a parte de fora do pé, algo extraordinário acontece. No momento em que os três dedos tocam a bola, abre-se um portal dimensional onde os deuses do futebol reverenciam a ousadia humana e resolvem brincar junto, participando de um fenômeno que mistura magia e entropia, tendo o imponderável como resultado.

Lucas descobriu que quem chuta de trivela não é apenas jogador de futebol. É bruxo. 

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 17 de setembro de 2021.