“Dez”. A escova de dentes entra e sai da boca num movimento desatento, sob preguiçosa disritmia, apesar de seguir absolutamente no automático. “Dez pontos”, ele pensa, enquanto sai da arcada de baixo para a de cima, novamente em ritmo ora lento, ora apressado, pouco se dando conta do que está a fazer. Termina, em tese, e não lembra se já havia escovado a parte inferior. Volta e faz de novo, em seguida, segue mais uma vez para a superior. “Dez pontos perdidos ”.
Antônio sai do banho. Esquece de enxugar as orelhas. Faz a barba só para baixo, sem escanhoar – aquele movimento de cortar para cima a fim de deixar o rosto bem lisinho. Ainda bem que esqueceu, pois em meio a tanta distração, poderia terminar todo cortado. Talvez fosse bom, o perfume no pescoço sobre vários pequenos cortes abertos cairia como um choque para quem está disperso em outro mundo. Ele deixa o tubo do creme de barbear aberto e se arrasta para a mesa. “Dez pontos perdidos em quatro”. Sua esposa bate com os talheres à mesa na tentativa de tirá-lo daquele torpor. A colherada de cuscuz vai à boca e erra o alvo, deixando cair farelo de milho na roupa. O café já esfriou. Tanto faz. Ele levanta, absorto, e sai para trabalhar sem o beijo de despedida.
No ônibus, relembra os sofríveis últimos jogos. “Dez pontos perdidos em quatro partidas”. Antes, olhava para quem vinha atrás com sorriso largo, de longe, julgando estar em posição já inalcançável. Enganoso é o coração que sonha. Agora, todos estão na cola. A esperança de título escorre pelas mãos. Antônio já não sabe se termina ou não o ano como campeão brasileiro. Ele pisca os olhos com mais força e percebe que acaba de perder a parada. Pisca novamente e volta ao filme dos jogos anteriores, agora na boa fase das vitórias, do treinador vencedor, de Tiquinho imbatível. O coletivo segue viagem, faz contorno no Centro da cidade e volta quase vazio no trajeto para o bairro. Ele perde o dia de trabalho. Apesar dos muitos assentos vazios, segue de pé, exatamente na mesma posição que se encaixou quando entrou no ônibus ainda lotado. Um metro e meio à sua esquerda encontra-se outro cidadão, também de pé, que assim como ele mantém olhar perdido para as janelas. Antônio percebe que o outro não subiu há pouco, mas veio junto por quase todo o trajeto. O homem balbucia algo, repetidamente. Antônio tenta uma leitura labial, porém sem sucesso. Se aproxima um passo pequeno, dois, nada. É preciso chegar mais perto, quase colado. Eles agora estão lado a lado, braços encostados, e o homem subitamente suspende seu pensamento alto. Seguem em silêncio, parada após parada, já se dirigindo ao terminal.
Antônio se consome em curiosidade. Faltam duas para o ponto final. O que faria um homem desistir de seu destino e dar uma volta de ônibus pela cidade? Resolve então puxar assunto.
– Dez pontos perdidos em quatro jogos!
– É pra se lascar – responde o homem, para a surpresa de Antônio, que emenda a conversa:
– O Botafogo jogou fora um título que estava nas mãos! – diz lamentando. O outro consente com a cabeça, parece ter entrado no diálogo.
– Nada mais deu certo desde que aquele homem saiu do time.
– O técnico? – pergunta Antônio, imaginando ser esta a resposta, mas querendo confirmar.
– Não, Garrincha!
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 10 de novembro de 2023.