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É gato!

publicado: 05/11/2021 09h44, última modificação: 05/11/2021 09h44

por Felipe Gesteira*

O amor entre Berenice e Júlio aconteceu à primeira vista. Foi arrebatador. Ela, da janela de casa enquanto observava a rua, viu o moço passar. Bastou que seus olhares se cruzassem uma única vez para que a menina dissesse “eu iria embora com ele!”. Parece que o universo ouviu. No dia seguinte, no mesmo meio de tarde, Júlio passa, percebe o olhar daquela que acabara de largar a infância e estava prestes a se tornar esposa e pergunta: “Quer casar comigo?”. Nem do “sim” foi preciso. Berenice prontamente saiu de casa, os dois deram as mãos e seguiram para o cartório mais próximo numa naturalidade que fazia a saída parecer previamente combinada. Berenice sabia que não voltaria daquele encontro para a casa dos pais. Casada, estaria em outra vida, em nova casa. Ela também sabia que não tinha idade para isso, nem autorização. Para casar, fugida, aos 14 anos de idade, forjou uma nova certidão de nascimento. E como os dados seriam mesmo trocados, aproveitou para mudar de nome. Passou a se chamar Carmélia, a esposa de Júlio, e juntos deram início a uma longa história de amor.

No mundo do futebol, Carmélia seria chamada de “gata”. É assim que se chama quem altera sua idade nos documentos para obter um benefício. Só que no futebol é o contrário. Os atletas mudam a idade para menos, assim conseguem jogar em categorias inferiores com as vantagens de mais força física e experiência. 

Assim foi com Antônio. Aos 18 anos e sem uma carreira consolidada na base de time algum, o jovem teria sérias dificuldades para conseguir espaço em um clube profissional. Ele veio de São Paulo com a família para morar na Paraíba. Filho de pais paraibanos que fizeram o retorno por falta de oportunidade na cidade grande, Antônio não tinha sequer um DVD com seus melhores lances. Desde os 12 anos tentava espaço nos times de lá, dos quatro grandes até os do interior. Do Mirassol ao Mogi Mirim, arriscou todos. 

Na despedida da capital paulista, um amigo recomendou que ele buscasse a sorte nos clubes paraibanos, mas como gato, pois o futebol no Nordeste já tinha alto nível para a pouca bola dele como profissional. 

Só que para um bom olheiro, não é preciso ver documento para se constatar que um jogador é gato. A puberdade denuncia as mudanças hormonais nos corpos dos meninos que fazem um adolescente de 15 anos ter características absolutamente diferentes daquele jogador de 18. E nesse aspecto, Antônio tinha sorte. Era franzino e tinha cara de pirralho. Passaria como um belo gato. 

O primeiro teste foi em João Pessoa, no Botafogo. Se não dava na cara que era gato pelo físico, a equipe técnica desconfiou da maturidade na movimentação. Antônio era menos afoito que os outros. E assim são os mais velhos, conhecem os ‘atalhos’ no campo de jogo. Uma rápida pesquisa e logo a farsa foi descoberta. 

Ainda na capital, Antônio tentou outros clubes. No Auto Esporte, perceberam que ele, apesar de miudinho, não entrava em divididas como um menino da faixa etária abaixo dos 15 anos. No CSP ele até passaria no teste, mas logo abriram os olhos quando perceberam a forma como ele protegia a bola para manter o domínio. 

De clube em clube, adentrando pelo interior, passando pelos maiorais e chegando aos gigantes do Sertão, aos poucos as chances de Antônio conseguir uma vaga em um time sub-15 eram reduzidas. 

Ele ouvia o motivo pelo qual fora descoberto a cada teste. A informação servia para que adotasse uma nova postura no exame seguinte. Ao passo que não acreditava no seu próprio potencial para alcançar o inimaginável, a sonhada vaga no profissional, Antônio seguia escondendo a verdade. “Não marcar, não dividir, não chutar de primeira, não fazer jogo de corpo”. No último teste, no Paraíba de Cajazeiras, Antônio não foi desmascarado, mas reprovado por critério técnico. De tanto se conter, deixou de ser.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 05 de novembro de 2021.