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Esporte de verdade

publicado: 16/06/2023 09h27, última modificação: 16/06/2023 09h27

por Felipe Gesteira*

Fã de futebol desde quando começou e se perceber enquanto pessoa e ainda aprendia as primeiras palavras, Gabriel repentinamente muda sua preferência esportiva e, quando perguntado, responde que tem como esporte favorito o vôlei. Ninguém na família joga vôlei, tampouco acompanha jogos de qualquer liga ou mesmo da Seleção. O pequeno, hoje com sete anos, sequer viu de perto uma única partida para que ali tivesse sido plantado um vínculo afetivo dele com a modalidade. Já viu partidas oficiais de futebol e basquete, mas vôlei, nunca.

– Do que você gosta no vôlei?

– De jogar – responde, de pronto, para a surpresa da professora.

– E onde você joga? – ela pergunta a fim de saber a origem da paixão repentina.

– Com meus primos, no videogame.

A relação de Gabriel com as telas começou cedo, e por volta dos quatro anos de idade ele teve o primeiro contato real com um videogame. Antes via o pai jogando, mas até conseguir participar da brincadeira com um controle ligado demorou um pouco. O pai justificava que ao menos era um esporte, e nisso o pequeno se mexia, chegava a suar um pouco. O dispositivo captava seus movimentos e reproduzia na TV tudo o que ele fazia no chão da sala. Assim brincava de tênis, boxe, boliche e até vôlei.

Por mais hiperrealista que pareça a experiência, para quem olha de fora aquilo tudo se limita a um faz de conta pós-moderno. A criança finge que toca numa bola virtual, que é projetada num universo fictício do qual ela até faz gol, isso dentro de situações calculadas por uma inteligência artificial que decide quando o jogador ganha, perde, e até quanta dose de dopamina seu cérebro recebe na distribuição de pequenas conquistas ao longo de uma tarde de jogatina. Só o suor é real, mas o cansaço mental termina sendo maior do que o mesmo esforço se empregado na pracinha do bairro.

Gabriel não é o único a se iludir com telas. Na verdade vê que todos à sua volta estão imersos em situações de vida semelhantes, trocando experiências reais por pequenas doses de prazer fornecidas em um universo virtual. A beleza está lá fora, dizem os adultos uns para os outros enquanto se veem por meio de aparelhos que subvertem até mesmo as feições a fim de alterar a realidade com brilho em excesso, cansando a vista e tornando fosco tudo o que está em volta. Gabriel, por ser criança, é ainda mais frágil diante desse tipo de experiência.

A professora de educação física estava pronta para roubar o menino dos jogos e conquistar o interesse dele por outras atividades. Nos primeiros dias de aula o pequeno tinha receio de correr, pois quando tentava fazer isso em casa logo após o banho era repreendido pela mãe, que não queria vê-lo suado. Como se os banhos fossem contados. Na escola, depois que desencantou o suor, toda brincadeira era bem-vinda. Pega-pega, esconde-esconde, e até as brincadeiras com bola. Ele se arriscava no futebol e jurava que queria ser goleiro. Certo dia a professora chegou perto e antecipou o que seria a aula.

– Gabriel, hoje vamos jogar um esporte novo, um que você nunca jogou.

– Qual?

– Vôlei!

– Mas eu já jogo vôlei! – respondeu o menino, todo se achando.

A professora sorriu pra ele de canto de boca, e começou a primeira aula de fundamentos. As crianças iriam aprender a fazer uma manchete. Na saída, quando o pai foi buscá-lo, Gabriel estava em êxtase. Parecia ser o dia mais feliz de sua vida. O toque da bola nos pequenos antebraços juntinhos causou uma revolução na cabeça do menino. Receber a bola, vê-la voando pelo impacto de sua jogada. Foi demais! Ele estava eufórico. Ao ver o pai, mal se conteve:

– Pai, você não vai acreditar. Hoje eu joguei vôlei! Vôlei de verdade!

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 16 de junho de 2023.