Um ídolo de verdade nunca decepciona. E se, por algum motivo comete um ato que confronta a imagem construída ao longo de sua trajetória, uma breve investigação revelará que se tratava de um falso ídolo. O verdadeiro está acima dos feitos e das conquistas. No caso do esporte, além do talento e do mérito alcançado, é a conduta do lado de fora da disputa que determinará a grandeza do ídolo. E assim, grande, é Raí, ex-jogador da Seleção Brasileira e do São Paulo e hoje diretor do clube. Ontem, em entrevista ao Globoesporte.com, o eterno capitão tricolor pediu a renúncia do presidente da República, Jair Bolsonaro.
“Se perder a governabilidade, eu torço e espero uma renúncia para evitar o processo de impeachment, que sempre é traumático. Porque o foco tem que ser a pandemia. [O impeachment] não é uma coisa que tem de se pensar agora, energia nenhuma pode ser gasta nisso, mas se estiver prejudicando ainda mais essa crise gigantesca de saúde, sanitária, tem que ser considerado.”
Há quem questione se esta deve ser a postura de um ídolo, seja do esporte, ou das artes. E quem questiona vem sempre com a desculpa de que não precisa misturar as coisas. “Esportes e artes de um lado, política do outro”. É este tipo de pensamento contrário à política, atividade inerente em toda relação humana, que nos aproxima de regimes autoritários e fascistas. E é justamente neste momento que o ídolo se difere dos demais.
Diante da pandemia causada pelo novo coronavírus, a postura dos ídolos é determinante para influenciar as pessoas no caminho da segurança e do bem-estar social. E na ausência de qualquer prudência por parte do líder maior político, que os demais se manifestem. Na entrevista, Raí falava sobre o retorno do futebol, e aproveitou para atacar a conduta do presidente Jair Bolsonaro. “Um posicionamento atabalhoado, é o mínimo que se pode dizer. Naquele momento, por exemplo, que ele deu aquele depoimento em rede nacional... Ele está no limite, muitas vezes, da irresponsabilidade, quando ele vai contra todas as recomendações da Organização Mundial da Saúde.”
Em outros trechos da entrevista, que aproveito para reproduzir aqui devido à relevância e ao importante contexto dentro do esporte, o ídolo do São Paulo também pondera o limite democrático da conduta do presidente. “Outro absurdo do Bolsonaro é inventar crises políticas ou de interesses próprios, familiares, no meio de uma pandemia. É inaceitável. Tenho certeza que muita gente concorda, inclusive alguns apoiadores do Bolsonaro. Ele foi eleito democraticamente, mas a própria democracia está conseguindo frear”, e adiante, Raí culpa Bolsonaro pelas mortes no país: “Eu acho que isso me fez até questionar o presidencialismo. Estar sujeito a uma pessoa como essa, a um presidente como esse, que foi eleito democraticamente, mas que toma decisões que confundem completamente a população. Por causa dele, e aí o cálculo pode até ser feito, milhares de mortes a mais vão acontecer.”
Para quem não se lembra, Raí é irmão de Sócrates, jogador ídolo do Corinthians, craque da Seleção Brasileira e até hoje lembrado por sua firme conduta política fora dos gramados. Sócrates teve papel importante na campanha pelas Diretas Já, e o irmão mais novo lembrou o exemplo que tinha dentro de casa. “Bom, se vocês acharam o meu depoimento forte, imagina o Sócrates. Inaceitável, indignação, só que na natureza dele iria se colocar e obviamente na mesma linha eu seguiria. E ao estilo do Doutor Sócrates, que com certeza teve uma importância gigantesca na história do país”.
Raí, eterno meia do São Paulo e da Seleção; Daniel Alves, capitão da Seleção e do São Paulo; Breno Calixto, ídolo pelo Náutico e hoje xerife da zaga do Treze. São apenas três exemplos de jogadores que honram suas biografias para além daquilo que se vê apenas dentro de campo.
*publicada orignalmente na edição impressa de 01 de maio de 2020.