Desde o início da parada do futebol em decorrência da pandemia causada pelo novo coronavírus questiono se há sentido em retomar as competições com portões fechados. A liga alemã tomou a iniciativa com uma série de restrições que vão muito além de impedir a presença dos torcedores. Os atletas serão expostos ao contágio de uma forma ou de outra, por mais que protocolos sejam seguidos dentro de campo. Vai ter medição de temperatura, observação de sintomas, mas um assintomático continua com todo o potencial de transmissão.
Não pode entrar em campo junto, não pode comemorar gol com os companheiros de equipe, não pode beijar a bola. No banco de reservas, só se estiver usando máscaras. Mas e na hora de cobrar escanteio, vai ter distanciamento? Claro que não. Ficou claro que essa urgência pela volta atende exclusivamente os interesses dos grandes patrocinadores, mesmo que o produto final seja sem graça e a vida dos envolvidos esteja em risco.
Quem defende a volta do futebol se ampara primeiramente nos resultados das competições. Um argumento muito fraco, pois o que acontecer daqui por diante, após tamanha pausa, jamais poderá ser considerado como se estivéssemos em um calendário contínuo. A temporada de 2020 terá para sempre um asterisco para explicar o que aconteceu. Um ano fora de qualquer padrão.
Se no Brasil as principais competições nacionais sequer haviam começado, na Europa estavam bem avançadas, e bem que podem encerrar como estavam. O tempo é de preservar a vida, o entretenimento pode esperar a volta com mais prudência, assim como farão demais setores que também administram grandes perdas.
O segundo ponto que os defensores da volta do futebol tanto batem é que, mesmo sem torcida, o esporte estará lá. Dizem ainda que será como assistir a uma partida de videogame, pois todos os elementos estarão reunidos.
Videogame na verdade é uma ótima saída para este momento de pandemia, e no que diz respeito às partidas nos ambientes digitais, a Confederação Brasileira de Futebol tem dado exemplo ao resto do mundo ao incentivar a prática esportiva em segurança. O e-Brasileirão, campeonato organizado pela entidade com participação gratuita e prêmio de R$ 20 mil recebe inscrições até hoje. Ontem, 20 mil jogadores estavam inscritos.
No caso do futebol com atletas de carne e osso, em campo, expostos ao risco de contágio pelo novo coronavírus, a relação de obrigação pelo retorno se assemelha a um regime escravocrata. São profissionais, empregados de seus clubes, que estarão ali mais pelo regime trabalhista do que por qualquer outra coisa. A emoção sufocada da vitória, o grito de gol abafado, todos tristes componentes de um trágico espetáculo planejado para o cumprimento de contratos. O mundo inteiro tem perdas financeiras, mas os investidores do futebol não querem perder. Apostam alto na volta de uma competição que, caso tenha atletas contaminados, será obrigada a fazer nova parada.
Para quem for assistir a essa triste disputa, a sensação será muito inferior à de quem torce por atletas de videogame. Será como visitar um zoológico cheio de seres vivos, porém aprisionados, forçados ao cumprimento da função de entreter os espectadores. Prefiro acompanhar Gabigol e Antony pilotando seus controles enquanto vestem virtualmente as camisas de clubes brasileiros.