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ESPORTES: Gigantes da pelada

publicado: 27/08/2021 08h00, última modificação: 27/08/2021 09h47


Na periferia de João Pessoa, bem naquele bairro que exalta o regime militar com o nome de um torturador, moravam dois gigantes dos campinhos de pelada. Para a realidade dos companheiros que tinham a honra de atuar ao lado deles, devia ser como jogar no mesmo time de Romário e Bebeto, referências da época para duplas de ataque bem-sucedidas. 

Mas no caso deles, se jogava com Bebeto ou Romário, nunca os dois ao mesmo tempo. Isso porque a pelada era feita no esquema de duplas. Campo pequeno, fosse na terra batida do campinho poeirão inserido naquilo que chamavam de praça, mas não passava de um terreno baldio que depois viria sim a ser uma praça, ou mesmo na rua lateral que dava para duas das principais do bairro. Traves no modelo clássico, montadas com chinelos, distantes três passos um do outro. 

Sendo no modelo de duplas, os melhores jogadores escolhiam seus parceiros, e eram sempre eles dois, os deuses da pelada do bairro. Pouco importa se tinham dez ou onze anos de idade. Para os companheiros era como se fossem jogadores profissionais do mais alto nível, desses que até desapegamos quando jogam pelo nosso time pois sabemos que, mais cedo ou mais tarde, serão vendidos para um clube europeu.

E quando a dupla era derrotada, o jogador que estava à espera normalmente substituía somente o coadjuvante da dupla, mantendo o craque. Ganhando ou perdendo, os protagonistas seguiam na jornada de partidas por uma tarde inteira. Os embates de dois heróis que sucumbiam ao cansaço natural ao longo das sucessivas disputas ia ficando até mais interessante. Os dribles mais lentos, pensados, até que pediam para o perna de pau que ficava guardando o gol diante da ofensiva do craque adversário para também ajudar no ataque. Era grande mérito para um zagueiro sério dar a tranquilidade que os melhores atacantes do mundo precisavam para concluir as jogadas mais incríveis. 

E por mais que no talento com a bola nos pés se assemelhassem aos dois integrantes da dupla de ataque campeã da Copa do Mundo de 1994 pela Seleção Brasileira, tinham nomes de craques estrangeiros. 

Quem parecia com Bebeto era David. Impressionantemente veloz, tinha um domínio de bola absurdo, dribles desconcertantes e a mesma arrancada que só viria a ser conhecida mais adiante, com Ronaldo Fenômeno. 

No campo adversário estava aquele que lembrava Romário no talento, na inteligência e na precisão ao finalizar para o gol. Giancarlo jogando bola era certeza de espetáculo nas tardes ociosas do Geisel.

A habilidade dos dois era tanta que por vezes a partida parecia um jogo de sinuca, onde a cada rodada um jogador dá a sua tacada. Os dois atacantes eram maus defensores, então o trabalho maior era vencer o brucutu-mirim que guardava o gol. Com a bola nos pés, David facilmente driblava Gian e, em seguida, partia para marcar. Em seguida, Gian fazia o mesmo. Houve casos de vencer a partida quem ganhava o par ou ímpar para o pontapé inicial. E para os coadjuvantes zagueiros, conseguir desarmar um daqueles dois era motivo de comemoração como se fosse gol na final.

Enquanto crianças, o sonho lúcido compartilhado àquela altura era de que os dois continuassem a disputa em outro patamar, talvez se enfrentando em clubes rivais, como Barcelona e Real Madrid, ou ambos pelo mesmo time, como faziam Romário e Bebeto pela Seleção, mas no Flamengo, para ser mais palpável. 

Ao passo que ninguém crescia, os sonhos paravam no limite da idade. Dizia-se que num eventual torneio inter-bairros, tendo mais jogadores nas equipes e a possibilidade de escalar dois atacantes, eles juntos formariam um time invencível. Parece até que aconteceu, pena que não vi.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 27 de agosto de 2021.