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ESPORTES: Pai de DVD

publicado: 03/09/2021 10h40, última modificação: 03/09/2021 10h40


Por muito tempo criou-se no Brasil a cultura de que bastava jogar uma bolinha que fosse e o menino vinculado a alguma categoria de base de um clube de futebol já teria chance de ser vendido para o mercado europeu. Se iria fazer sucesso na Europa, aí já seria outra história. O mais importante era mesmo vender. Atender à demanda do mercado em ebulição e despachar tantos pernas-de-pau quanto tivéssemos disponíveis. 

O mais difícil era fazer a ponte com os interessados na importação do talento brasileiro e provar que ali estava um bom investimento. Sim, porque os clubes de entrada no Velho Continente não compram jogador pra fazer graça, tampouco querem constituir ídolos históricos em suas praças. A ideia quase sempre é identificar um bom negócio e fazer dinheiro em cima, na revenda. Como todos os dias um besta e um sabido saem de casa, se encontram e fecham acordo, os agentes responsáveis por oferecer os atletas instituíram o DVD como mecanismo para mostrar todo o potencial esportivo dos jogadores.   

Era assim que o Brasil vendia jovens promessas para clubes da Holanda, Ucrânia, Portugal, Turquia, Sérvia e Estados Unidos, só para começo de conversa. Preparava-se um compilado com os melhores lances de cada jogador. Por mais que o pereba perdesse 100 chutes na cara do gol, somente os feitos entravam para o bendito DVD. Eram horas e mais horas de captação para conseguir cada passe, drible, lançamento perfeito. Muitas vezes um jogo inteiro só rendia 10 segundos de lampejos de maestria. Mas cata dali, junta daqui, em um ano se montava o DVD e o jogador era bem vendido para tentar a sorte onde nem se fala português, nem se come arroz com feijão. 

Foi exatamente assim que Adolfo decidiu emplacar o filho como empreendimento familiar para um futuro confortável da família Borges e Barros, composta em sua maioria de investidores cariocas que por muitos anos se sustentaram em bolhas imobiliárias e esquemas de pirâmides financeiras. Hoje, falidos, colocam os membros para jogo.

O menino mais novo nem de futebol gostava, mas foi inscrito nas categorias de base do Santos graças à amizade do pai com um olheiro do Alvinegro Praiano. Adolfo havia sido advertido de que daquela poça não sairia peixe, mas insistiu. E sabendo que seria difícil conseguir boas imagens do filho em campo diante da concorrência, contratou uma equipe de filmagem exclusiva para acompanhar o pequeno Augusto Robson Borges e Barros, que agora se chamaria somente Borges, em referência a um recente matador do futebol brasileiro que também teve passagem pelo Santos, mas diferentemente, jogava bola de verdade.

Foi um ano inteiro de gravações com equipe dedicada para se conseguir espremer um DVD muito meia-boca. O pai insistia naquela empreitada, mesmo sob os protestos do filho, que passava os jogos quase o tempo todo amarrando o cadarço das chuteiras, ou arrumando seus meiões. 

Para que o negócio andasse, Adolfo garantia a equipe de cinema para acompanhar; mandava também um motivador ficar à beira do campo empurrando o jovem Borges; contratava ainda equipe multidisciplinar com psicólogo, massagista, fisioterapeuta e nutricionista. Era tudo pensado para que o menino jogasse a mínima bola necessária para que fosse vendido. 

Borges só jogava quando o pai ia ao campo acompanhar a partida. Até de futebol o pequeno passava a gostar, naqueles raros eventos que aconteciam não mais que uma vez a cada três meses. Era somente assim que eles se viam, no campo, quatro vezes por ano, com direito a registro de foto feliz no na rede social e cena conjunta para enquadrar bem o pai de DVD. 

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 03 de setembro de 2021.