Era grande a expectativa pelo novo documentário sobre Pelé, que estreou em 23 de fevereiro na Netflix. O Rei do Futebol sempre fora criticado por não ter assumido ao longo de sua carreira posturas mais críticas contra a ditadura militar, como fizeram outros craques, em momentos distintos ao longo de 21 anos de chumbo, período em que o Brasil foi governado pelo regime, entre 1964 e 1985.
A pressão sobre o novo filme crescia à medida em que o ídolo Pelé continuava a se dissociar da figura de Edson Arantes do Nascimento. Pouco tempo após completar 80 anos, em outubro de 2020, Pelé trocou afagos com o presidente Jair Bolsonaro, um apoiador do regime militar, e isso gerou ainda mais críticas ao Rei.
Ídolo incontestável dentro de campo, figura cheia de pontos a se questionar fora das quatro linhas. Pelé não é o único com esse perfil. Assim como qualquer um que assistir ao filme, é humano e terá suas arestas, expostas principalmente por sua maior visibilidade.
O temor sobre o que viria no filme era exatamente se os pontos fora de campo a respeito do jogador seriam mostrados, ou se o documentário viria como um pedestal cinematográfico para que o craque fosse exibido sem qualquer contestação.
Pressão também por não ser uma obra qualquer. Pelé (Netflix, 1h48min, 2021) se propunha desde que fora anunciado como um documentário definitivo sobre a vida e a carreira do Rei. Após tantos filmes de qualidade questionável falando sobre o camisa 10 da Seleção Brasileira, vir um novo, a esta altura, passar pano sobre a suposta omissão diante da ditadura, seria no mínimo um desserviço.
Antes de chegar ao ponto de como o filme aborda a relação de Pelé com os generais do Exército Brasileiro, vou dar tempo para que o leitor decida avançar ou não, caso queira escapar de eventuais spoilers.
A parte visual no filme produzido por Kevin Macdonald impressiona. Imagens da Copa do Mundo de 1970 com qualidade de encher os olhos até para quem esqueceu de como eram baixas as resoluções das TVs mais antigas e hoje só se encanta com a vida em 4k.
Além de um craque dentro de campo, a ditadura precisava de um ídolo para o Brasil. Sobre a relação de Pelé com os ditadores brasileiros e sua escalação quase obrigatória para a conquista do Tri no México, o filme mexe na ferida sem poupar o jogador.
E se não ataca de forma visceral a imagem de Pelé, também não se pode dizer que o documentário fica absolutamente em cima do muro. Há elementos importantes trazidos à tona para discussão da construção do ídolo em pleno regime militar no Brasil: racismo e medo.
Em uma de suas falas no filme, Juca Kfouri é cirúrgico ao dizer que Pelé não tinha garantia alguma de que não seria preso, torturado e até morto caso decidisse confrontar a ditadura no Brasil.
Apesar de não falar diretamente sobre qualquer posicionamento político, ou mesmo se houve medo, Pelé visivelmente se emociona ao lembrar da pressão dos militares. Enxergar as forças opressoras e armadas sob o ponto de vista de quem é negro e de origem humilde, apesar de ídolo mundialmente conhecido, é absolutamente diferente.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 26 de março de 2021.