Para Amarildo, torcer é um ato sagrado. É afeto. É lembrança de quando assistia junto ao seu falecido pai às partidas do Botafogo, sempre aos domingos, na arquibancada sol do Almeidão. De tanto que a saudade dói, deixou de lado a paixão pelo time de João Pessoa e virou torcedor pela televisão. De coração, só o Belo, que ele prefere não ver, pois a saudade é ferida ainda aberta. Assim, como quem vê jogo de time dos outros, torce pelo espetáculo, mas com a limitação de só conseguir cumprir seu ritual nas tardes de domingo.
É que o serviço na repartição onde Amarildo trabalha começa muito cedo. Dessa forma, fica praticamente impossível assistir a um jogo na quarta-feira à noite, mesmo que pela TV. E se for jogão? Desses de mata-mata, que terminam empatados, correria na prorrogação, virada sobre virada, novo empate e decisão nos pênaltis. Como fica o coração do torcedor, mesmo que não seja o do seu time que esteja na reta? Após o final de uma partida assim, leva-se mais ou menos umas duas horas até que a adrenalina baixe completamente. E para acordar cedo no dia seguinte, preparar café da manhã, deixar as crianças na escola, chegar no trabalho na hora e ainda com disposição, é rojão!
Por isso Amarildo nem arrisca. Depois da novela, faz questão de desligar a TV. Foge do pontapé inicial como o diabo, da cruz. Um começo de jogo eletrizante pode ser o prenúncio de uma ressaca no dia seguinte. Vai que nos primeiros segundos alguém abre o placar com um chutão do meio da rua? Fica difícil sair da frente da tela depois de um lance desses.
Para evitar a dor de cotovelo no dia seguinte, Amarildo sequer procura saber de futebol, especialmente nas manhãs de quinta-feira. Foi num dia assim, ele lembra até hoje a data: 28 de julho de 2011, uma quinta-feira após o incrível Santos x Flamengo na Vila Belmiro, com vitória de 5 a 4 para os cariocas. Até dor de barriga Amarildo inventou só para se esconder no banheiro e não ouvir falar do espetáculo protagonizado por Neymar e Ronaldinho Gaúcho, cada qual de um lado do campo. Mas nem no banheiro ele escapou, e ali, sabendo de tudo, por cima, como quem ouve uma fofoca mal contada, roeu feito quem leva cangaia de um grande amor.
É por conta desse sofrimento que Amarildo torce para que todos os jogos que ele não poderá assistir sejam medíocres. Se for jogo de campeonato de pontos corridos, que seja horroroso. Sem gols, sem ninguém agredir ninguém. Parecia um jogo de comadres, um jogo tão preguiçoso que o espectador deixa de olhar para a tela e se perde conferindo qual a última notícia falsa publicada no grupo de WhatsApp da família. E se for partida eliminatória, que seja em jogo insosso, times medrosos, zero a zero até o último minuto e final em tempo normal, com gol de cabeça, cagado, resultado de cruzamento que iria direto pro gol e caiu na pequena área como um chute errado.
Naquela segunda-feira de rodada dupla da Eurocopa, Amarildo estava especialmente concentrado em zicar as duas partidas. Isso porque nem o direito a perder o sono e viver a ressaca no dia seguinte, no escritório, ele tinha. Eram partidas que aconteceriam no meio da tarde, em pleno expediente de trabalho. Um suplício para quem ama futebol.
As telas dos celulares dos colegas de repartição estavam todas ligadas. Amarildo não conseguia manter a mínima concentração. Tentou uma pausa, mas a cada improvável gol que a Suíça marcava na França era um copinho de café quente que ele derrubava sobre sua roupa. Precisava o jogo ir para os pênaltis? Àquela altura ele já estava sujo de café, queimado, suado e agoniado. Gol pra lá, gol pra cá, não tinha carimbo, grampeador, e-mail enviado que prestasse. Deu tudo errado até Mbappé perder a última cobrança.
Sobressaltado, Amarildo respirava fundo, certo de que o jogo seguinte, entre Croácia e Espanha, seria ao menos morno.
Foi tanta falsa dor de barriga para fugir, de cotovelo que não passava, e de cabeça pelo aperreio que o apêndice estrangulou. Na ambulância, o telefone do socorrista transmitia a prorrogação. Longe do trabalho, o som da sirene era pano de fundo analgésico para os gritos de “gol!”.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 02 de julho de 2021.