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Ex-atleta digital

publicado: 04/03/2022 08h00, última modificação: 04/03/2022 12h04

por Felipe Gesteira*

Tudo o que João Gabriel menos queria na vida era se tornar atleta de qualquer coisa que fosse. Onde houvesse disputa, passava bem longe. Assistir, sim, ele topava. Torcia, vibrava, abraçava desconhecidos e zoava junto aos amigos. Mas se precisasse entrar em uma competição para amarrar a chuteira ou mover uma única peça de xadrez, se tremia todo. E não era por falta de aptidão ou dificuldade física. A questão de João Gabriel era um misto de preguiça em excesso e desencanto por fazer parte do jogo de ganhar e perder. Ele dizia secretamente que torcia pelo Fluminense, time do pai, Seu Aldrovando, mas na verdade não torcia por nenhum, apenas se divertia com o moído.

Não tem nada de anormal gostar de esportes e não participar de nada que envolva competir em qualquer prática esportiva. João Gabriel fugia até dos jogos internos da escola, o que matava o pai de desgosto. Seu Aldrovando, que fora atleta de futebol, vôlei, atletismo e natação na juventude, sonhava que seu filho seguisse a linha, mesmo que não fosse em nível profissional, mas arranjasse uma ou outra medalha para pendurar junto às suas e começar a compor um mural das conquistas da família, em que cada uma contasse a história de uma vitória para entreter os amigos na mesa do bar. 

A única coisa na qual o menino topava competir era videogame. Na verdade, jogo de computador. “Um tal de League of Legends”, contava o pai aos colegas de repartição. Foi quando um deles alertou que este era o jogo considerado um esporte digital, com ligas organizadas, times, equipes contratadas e mantidas com salários pagos em dia por clubes profissionais, como o Flamengo, e até premiações milionárias. Foi aí que Seu Aldrovando endoidou. Ele nem queria o dinheiro. Para o pai do pretenso atleta que nunca passara por dificuldade financeira, mais importava o feito. E ali estava a chave, bem debaixo do seu bigode. Os quase R$ 10 mil investidos em um computador de ponta que até então não servia de coisa alguma voltariam como orgulho para a família.

Só que apesar de João Gabriel realmente participar do jogo famoso, ele não competia, apenas figurava. Entrava na equipe dos amigos para passar tardes, noites e madrugadas adentro, cada um de suas casas, jogando conversa fora enquanto as partidas aconteciam. De tão mal que jogava, por muitas vezes o time perdia por sua causa, e isso também era motivo de risadas. 

Seu Aldrovando não sabia de nada, só registrava o tempo que o adolescente passava no computador. Começou a comparar o ‘treinamento’ de seu filho com a dedicação empregada por atletas profissionais do futebol. Na conta e no juízo do pai, o menino trabalhava o suficiente para ser o Cristiano Ronaldo do League of Legends. 

Não deu outra. Seu Aldrovando teve a certeza de que era o momento de investir. Meteu o termo no Google e inscreveu o filho na primeira competição que encontrou. Imprimiu o comprovante de inscrição e bateu na porta do quarto, certo de que faria uma boa surpresa, pois o futuro orgulho da família a partir dali teria todo o suporte necessário para o início de uma carreira de sucesso.

Não fosse a cadeira gamer caríssima, o jovem teria caído para trás com a notícia. O pai, estupefato com a recusa, não sabia onde esconder a decepção. João Gabriel ficou tão indignado com aquela última investida para que participasse de uma competição que desinstalou o jogo para nunca mais usar. Convenceu os amigos a largarem o vício digital e todos passaram a se encontrar para jogar qualquer coisa que não pudesse ser regulamentada e classificável em disputa sob regras. Surgia ali o homem que viria a ser uma lenda viva das artes do leriado e da porrinha.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 4 de março de 2022.