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Jesus ocupado

publicado: 11/02/2022 08h00, última modificação: 15/02/2022 11h46

por Felipe Gesteira*

— Meu negócio é com Jesus! — dizia Dona Berenice, ríspida e altiva, sempre que alguém lhe recomendava resolver qualquer problema cotidiano pelos meios tradicionais.

De querela com vizinho a briga entre parentes dentro de casa, problema com IPTU, doença e o que mais surgisse, Dona Berenice resolvia com oração. Bastava que algo lhe tirasse o sossego e ela logo ia “para os pés de Jesus”. Pedia de tudo, tudo mesmo! Se queria comer algo que fora proibido por seu médico, agradecia pela refeição e pedia que Jesus retirasse daquele alimento todo o colesterol. Em seguida, tranquilizava filhos e netos, dizendo que ali não havia motivo para qualquer preocupação, porque acima do médico dela estava o “médico dos médicos”, e este havia liberado a ela a comida. 

A relação entre Dona Berenice e o seu Jesus era bonita de se ver. Conversava com o Divino com a intimidade de quem conversa com um pai, com acesso ininterrupto. Orava o dia inteiro e pedia pelas coisas mais simples, o tempo todo. Se estava esperando o ônibus na parada, ela dizia em voz alta: 

— Jesus, não quero dar nem um passo. Manda o motorista parar aqui onde estou! — e encerrava o pedido em tom de ordem. 

Quem estava ao seu lado na parada de ônibus via o ‘milagre’ acontecer. O motorista parava exatamente onde ela havia ordenado aos céus. Para quem compartilhava da mesma fé daquela senhorinha, era como se ela realmente tivesse uma linha direta com o Altíssimo. O oculto, no entanto, eliminava o trabalho do motorista, que não escutara recado algum, apenas quisera ser gentil com a idosa que esperava pelo ônibus. 

Ela também orava para interferir nas relações familiares. Bastava achar que um namorado não tinha futuro para uma neta sua que ela logo disparava a demanda: — Jesus, termina esse namoro! — e assim começava o choradeiro. A neta pedia à mãe que intercedesse para que a avó retirasse o pedido. Se a fé da família era pouca em relação à religião de Dona Berenice, sobrava a crença no poder que a matriarca supostamente tinha a partir de sua relação próxima com o Filho de Deus.

A fama de Dona Berenice se estabeleceu também porque vez por outra ela agia para dar uma ‘forcinha’ aos céus, o que contribuía para a construção do imaginário em torno da pessoa que conseguia tudo o que pedia. Ela chegava a ameaçar usando o prestígio que havia conquistado. 

— Se esse cachorro continuar latindo durante a noite pra tirar meu sono, vou pedir a Jesus que leve! — Daí em diante, a família agia para impedir, fosse tentando convencê-la do contrário, ou pedindo ao cachorro que parasse com os latidos. Certa vez, de madrugada, ela abriu o portão para que o cão fugisse, e disse a todos no dia seguinte que quem levou foi Jesus. Para os pássaros das gaiolas, o princípio era semelhante. Ela tirava a trava da porta da gaiola, o resto era “com Jesus”. 

Tiago, neto de Dona Berenice, que morava com ela, assistia diariamente às orações da avó em tom de conversa. 

Na final da Copa do Mundo de 1998, Tiago vivia a expectativa de comemorar a conquista do penta pela Seleção Brasileira. No tetra ele tinha apenas dez anos, entendia menos de futebol, e agora estava convicto de que a França não seria páreo para o time de Ronaldinho. Até que a maior esperança de gols do Brasil fica fora da final e o jogo desanda. Quando o time da casa marca o segundo gol, Tiago percebe que ali, em campo, não tinha mais jeito. Resolve pedir a Jesus, como sua avó. A França marca o terceiro. Quem era Tiago para chegar assim em Jesus, sem intimidade alguma? Ele resolve pedir ajuda à avó, que, para ele, era a única pessoa capaz de impedir a tragédia operando um milagre.

— Vó, pede a Jesus pra o Brasil ganhar! — pediu Tiago, quase chorando. Dona Berenice respondeu sem pensar, como quem salta para marcar um gol de voleio. 

— Jesus tem tempo pra besteira não, menino!

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 11 de fevereiro de 2022.