Nos dias de domingo, o despertador de Juninho é ajustado em 30 minutos a mais do que durante a semana. Apesar de não precisar acordar tão cedo para ir à escola, a pelada no campinho poeirão do bairro é sagrada, e por isso ele não arrisca confiar apenas no próprio alarme biológico, mesmo que o sol o acorde antes, como de costume. Mas exatamente naquele primeiro dia do ano, de compromisso marcado para jogar bola com os amigos, o relógio tocou e ainda estava escuro. Juninho afasta o tecido da cortina, procura o sol, em vão. O céu escuro confirma o temido inverno nuclear, anunciado ao longo da semana com ares de ficção científica diante dos ataques com armas de destruição em massa que começaram após a deflagração da Terceira Guerra Mundial.
Ao desligar o despertador, Juninho vai até a sala e encontra seus pais apreensivos na frente da TV. A casa iluminada apenas pela luz elétrica destoa do grito da chaleira e do cheiro de cuscuz com ovos que vem da cozinha, o café da manhã preferido da família. No telefone, dezenas de mensagens no grupo da pelada. Os amigos se organizam para fazer algo de relevante no horário em que seria o jogo, inviabilizado pela escuridão.
Todos estão com medo. Mas não há muito o que fazer ante a realidade que se confirma. Esperançoso de que tudo dará certo, mas realista de que poderão não sobreviver, Juninho propõe que a brincadeira incentivada ao longo dos últimos meses na escola, de se construir cápsulas do tempo, seja levada a sério. Os amigos da pelada imaginam como seria triste um mundo sem futebol, e decidem que para proteger a civilização futura deste mal inimaginável, construirão suas cápsulas do tempo com arquivos que preservem o esporte e revelem quem foram os grandes jogadores de outrora.
Juninho e seus amigos decidem reunir imagens, recortes, notícias e mídias somente de jogadores brasileiros, pois, se o inverno afeta o mundo inteiro, pensam eles que cabe a cada país cuidar dos seus. Entram na lista Romário, Ronaldo Fenômeno, Ronaldo Bruxo, Zico, Garrincha, Sócrates, Rivaldo; e também alguns da novíssima geração, como Casemiro, Hulk e Vini Jr.
Coube a Juninho a tarefa de preparar o material que guardaria informações a respeito do maior jogador de todos os tempos: Pelé. Ele o fez com muita responsabilidade, consciente da honra contida naquela missão, além da importância histórica em levar o legado do Rei aos sobreviventes e novos moradores do planeta reconstruído. Após juntar tudo o que pôde encontrar, lacrou a urna com muito cuidado para que o conteúdo não estragasse ao longo dos anos até que pudesse ser encontrada e enterrou junto às demais.
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O tempo em outros planos passa de forma diferente. De Angelis, que um dia já fora conhecido por Juninho, foi premiado pelos anos de trabalho ajudando outros seres em suas escaladas evolutivas. Pediu como dádiva o direito de visitar a Terra, onde mais de 500 anos se passaram desde sua estada por lá. Ainda preso a valores terrenos, estava mais curioso para saber se as cápsulas enterradas haviam dado algum resultado do que sobre o rumo geral da humanidade.
Com a visão de um ser evoluído, De Angelis percorre a Terra para descobrir se o futebol fora resgatado. Ele se encanta ao descobrir que sim, e encontra estádios, museus, e ainda diversas referências aos ídolos de sua passagem por aquela existência. Se entristece, no entanto, ao não identificar menção a Pelé. Como pode? Mesmo que sua cápsula não fosse encontrada, será que ninguém mais no mundo inteiro teve a mesma ideia? Trata-se do maior de todos os tempos, e se há estátua para Ronaldinho, deveria haver também para Pelé.
Desolado, desiste de buscar Pelé nos ambientes esportivos, larga sua curiosidade terrena e vai tentar entender como a humanidade de hoje busca o divino. Tamanha foi sua surpresa ao se deparar com a imagem do Rei dentro de um templo. Nos cultos da Nova Terra, diversa e politeísta, Pelé é considerado mais que um jogador de futebol. Pelé é um deus.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 30 de dezembro de 2022.