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Morango

publicado: 24/02/2023 00h00, última modificação: 24/02/2023 11h06

por Felipe Gesteira*

O foco na partida era total. Durante a semana inteira de preparação para aquela decisão, o técnico repetia no pé do ouvido de Flavinho para que ele não tirasse o olho da bola. O menino era talentoso, acima da média, diziam os olheiros, mas a distração chegava a ser cômica. Qualquer coisa que acontecesse fora do trivial no meio da partida tirava sua atenção. Na semifinal, um pombo pousou na beira do gramado quando ele carregava a bola e orientava o avanço do time. O bater de asas do animal foi suficiente para tirar o jogador de tempo e fazê-lo perder a bola, no que resultou em contra-ataque e gol da equipe adversária. Por sorte era final do segundo tempo e a vantagem construída na primeira etapa, com um gol e duas assistências de Flavinho, não foi abalada.

Ele era o típico volante criativo. Magrinho, sabia desarmar, assim como cadenciava o jogo, armava o campo ofensivo, fazia lançamentos, chutava de longe para o gol. Mas se distraía com qualquer besteira. Os companheiros reconheciam que o time precisava do seu talento, e sequer cogitavam o quanto Flavinho poderia render se um dia conseguisse jogar focado.

Na saída da semifinal, ele chegou a perguntar a um companheiro de time se era verdade o que diziam a respeito de seu jeito distraído, ou se o caso era perseguição do treinador.

— Tás brincando, Flavinho? Queres mesmo que eu te lembre os episódios?
— Apois lembre aí.
— Teve o dia em que você perdeu a bola porque tua irmã caiu da arquibancada.
— A bichinha, pô. Fiquei preocupado geral.
— Sim, meu amigo, mas teu pai tava olhando. E a gente dentro de campo, se oriente! — alertou o amigo, já quase sem paciência.
— Tá, mas uma vez não conta. Ok, duas com essa de hoje, mas porque achei que o pombo viria pra cima de mim.
— Tava longe, meu amigo! Tu no meio do campo e o pombo na beira do gramado. Deixe de história.
— Então foi só isso?
— Não, meu irmão. Tu já perdeu a bola quanto tua mãe gritou pra incentivar o time e tu se escondeu achando que era carão. Tem noção?
— Tá massa, entendi. Vamos pra frente.

Como a final do campeonato seria a primeira vez em que o time formado por garotos jogaria no maior estádio da cidade, o Almeidão, havia o receio de que muitos outros fatores pudessem distrair Flavinho. O treinador adotou uma medida drástica durante a semana para ajudar no foco com a bola. Nos dias que antecederam a partida decisiva, Flavinho treinou usando um par de antolhos, como aqueles que os cavalos usam para limitar sua visão. O equipamento serviu para ajudar a manter o olho na bola, mas na hora de construir as jogadas, o menino perdia parte de seu potencial com a limitação da visão periférica. — Olho na bola — dizia o treinador, e tranquilizava o time, garantindo que no dia do jogo Flavinho não usaria aquele apetrecho.

Com a iminência de um primeiro título na carreira dentro de um estádio de verdade, era difícil conter a ansiedade do time. De dentro do vestiário já dava para ouvir a barulheira que fazia a torcida, com cornetas, zabumbas e demais instrumentos musicais. Os companheiros temiam que Flavinho não conseguisse ‘entrar’ na partida, e ao mesmo tempo sabiam da dificuldade de vencer sem ele. Na subida do túnel, o técnico aparece com duas bolinhas transparentes. Eram protetores de ouvido feitos de silicone, usados por nadadores, e que serviriam para abafar o som ambiente. — Vá e faça seu jogo, do jeito que treinamos, não precisa nem ouvir a minha voz — disse, tranquilizando o menino para que ele conduzisse o time ao título.

Flavinho entrou focado. Não ouvia a torcida, gritos de pai e mãe, os comandos dos companheiros, nada. Fazia a partida de forma magistral. Nada o distraía, e mesmo assim era um jogo duro, pegado. Empate em 2 a 2 no primeiro tempo, ambos os times cansados, até que a secura na boca, agravada pelo calor, parecia ter sido psicologicamente aplacada por um som que vinha da arquibancada. Os companheiros de time, que ouviam todos os barulhos misturados, não entendiam o que havia acontecido para que Flavinho deixasse o gramado com o semblante tão absorto. Era como se tivesse sendo atraído por um canto de sereia. Mas o doce não estava na voz, que repetia o grito capaz de atravessar qualquer proteção.

— Ooooooooolha o Cremosiiiiiiiiin!
— Morango, quero o meu de morango! — respondeu Flavinho.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 24 de fevereiro de 2023.