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No bairro da Torre

publicado: 02/06/2023 00h00, última modificação: 05/06/2023 11h09

por Felipe Gesteira*

Em todo bairro há de ter um boteco. Não necessariamente um bar de grandes proporções, mas simples que seja, ou nem pode ser considerado devidamente um bairro. Seria no máximo um conjunto, um aglomerado de casas, uma vila, mas bairro onde se dorme, acorda, luta e chora, precisa de boemia. E como de tudo tem no bairro da Torre, há também de ter um bar. 

Tem vários, na verdade. Bares grandes, com estrutura, tela para exibição das partidas de futebol do Campeonato Brasileiro, cadeiras e mesas de sobra, como também há daqueles que mal se tem onde sentar. O cliente recebe sua cerveja geladíssima já dentro da camisinha, um copo americano e fica lá, de pé, administrando como pode e dividindo o trabalho de segurar e servir com quem partilha a bebida, pois o dono do estabelecimento já faz todo o resto sozinho e está muito ocupado cuidando dos tira gostos.

Se um bar de bairro dispuser da mínima estrutura, pode observar que uma das mesas será rotineiramente ocupada por jogadores de dominó. Eles visitam o local diariamente para a prática desportiva, independentemente do consumo. O dono nem se aborrece mais, é como se ali coabitassem, compondo o cenário visual e integrando o som ambiente da música que toca baixinho na caixa com as batidas das peças na mesa e as constantes provocações dos participantes que mais blefam do que de fato articulam alguma estratégia para alcançar a vitória.

E se em todo boteco de bairro tem mesa de dominó, na Torre não poderia ser diferente. Mas para o bairro da Torre que de tudo tem, dominó é pouco.

Na Torre, como em todo bairro, tem bar e tem também padaria. Algumas com mesas e cadeiras para os clientes consumirem no local, outras que até vendem cerveja. E na padaria de Seu Eustáquio, localizada numa esquina de pouco movimento, tem tabuleiro de xadrez. 

Às 13h30 de uma terça-feira, sob o calor úmido que só João Pessoa sabe proporcionar, dois homens se enfrentam. Um deles está de camisa regata; o outro, vestido formalmente, como que dando certa importância à partida. Quem senta nas mesas vizinhas para comer um pão na chapa com ovo e queijo percebe o clima de bar instalado, numa disputa séria, com provocações de lado a outro em tom tão mais intenso do que seria uma mesa de dominó com quatro jogadores que sobre o movimento silencioso e delicado das peças suas vozes compensam a ausência da batida seca das ‘pedras’ do dominó.

— Isso, meu garoto! Era exatamente assim que eu queria que você mexesse esse cavalo! — provocou o jogador mais despojado. 

— Como você queria? Não era assim, não. — retrucou o outro. 

— Era sim, você vai ver, vou te mostrar. 

— Não vou ver nada, quem vai ver é você.

Seu Eustáquio passeava pelo salão para conferir se estava tudo nos conformes, principalmente com o pedido do cliente que sentava ali pela primeira vez e se via perplexo diante do desprendimento daqueles atletas em plena terça-feira, ainda que com certa inveja, pois tinham tempo livre para brincar enquanto ele engolia a comida para voltar ao trabalho.

— Esse jogo está na minha mão.

— Não tá não, tá na minha. Vou te mostrar. 

— Tá aí, quero ver! 

— Pois tome! Xeque-mate!

— Com o cavalo? 

— Olha pra Torre, meu nobre!

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 2 de junho de 2023.