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O golpe da sede

publicado: 01/04/2022 09h47, última modificação: 01/04/2022 09h48

por Felipe Gesteira*

Nem só de travinha, chinelo e bola rolando ao chão se faz uma pelada. Da mesma forma que eram sagradas as partidas de futebol nos campinhos do conjunto Ernesto Geisel, em João Pessoa, também era o vôlei de toda tarde, jogado em duplas, com regras de praia, porém improvisado num belíssimo poeirão. 

Quem jogava toda tarde sem perder um dia sequer era Adalberto. Um homão, como se dizia no bairro, com seus 1,90m. Não era dos melhores jogadores, até dominava alguns fundamentos, mas sua altura, por incrível que parecesse, o atrapalhava. Adalberto desempenhava melhor as funções de um levantador, mas sempre era escolhido para fazer dupla com um miudinho, e aí acabava tendo que improvisar. Era corpulento, e lento que só ele. Como nem só de altura se faz uma cortada, acabava perdendo mais que ganhando.

E o que tinha de tamanho, também carregava de inquietude. No perde e ganha, acabava quase sempre esperando a vez de jogar outra partida. Ele não conseguia esperar fazendo nada, daí atravessava a rua e sentava à mesa dos amigos que jogavam dominó toda tarde na calçada da casa de esquina. As tardes seguiam para Adalberto exatamente assim, alternando entre campo e tabuleiro, perdendo mais que ganhando em ambos.

Apesar de jogar mal, Adalberto era muito querido. Aquele típico bonachão, amigo dos mais agradáveis de se ter por perto. Engraçado, sagaz. Era tão benquisto que chegava a ser disputado entre os grupos do vôlei e do dominó. A turma que jogava na mesa trabalhava para convencer o amigo de que se ele ficasse sempre ali, jogaria a tarde inteira sem precisar esperar a vez, pois eram só quatro mesmo, contando com ele. 

Havia outro motivo para manter Adalberto somente no dominó, mas que nenhum dos seus três amigos queria admitir. A cada vez que ele chegava da partida de vôlei para pegar suas seis peças e disputar uma partida, encostava todo suado na mesa. Não era pouco suor, não. Suava de pingar! Além disso, ele secava sozinho todas as garrafas de água gelada. 

Se na base do argumento ninguém conseguiu tirar o amigo de vez do vôlei, partiram então para a estratégia. Decidiram retirar a água da mesa. A ideia era causar desconforto, e quando Adalberto reclamasse, diriam que ele só estava com sede por conta do vôlei. 

Após a partida, lá vem Adalberto, como sempre, pingando de suor. Dá um tapinha em cada amigo, abraça quem reclama da mão molhada, senta, pega suas peças, analisa, baixa na mesa, procura a água. 

— Cadê a água? — pergunta. 

— Teve hoje não — responde um deles, prendendo o riso. 

— Deixa de besteira, pô! Cadê a água? Calor do carai — reclama, esbaforido.

— Tu tá com calor porque tava jogando, aqui tá todo mundo tranquilo. Eu mesmo nem estou com sede — responde um outro na maior cara de pau. 

— Mentira que vocês estão me negando água, né? Tou vendo, tudinho com cara de rapariga! Negando água, véi! É sério?

Ninguém aguentou a encurralada e caíram os três na risada. Pediram desculpas, disseram que não iriam fazer mais isso. Adalberto, no entanto, não se conformava. Achou pesada a brincadeira. Prometeu se vingar, ninguém acreditou. 

Seis meses depois, Adalberto liga para cada amigo dizendo que não estava a fim de jogar vôlei naquele dia, ia ficar, como eles sugeriam há tanto tempo, uma tarde inteira só no dominó. A notícia era recebida com alegria, mas ele explicava que não poderia ir até o campo, no Geisel, pois estava com o pé inchado. Os amigos nem desconfiaram, pois era a cara do grandalhão arrumar uma desculpa. Estavam certos que não se tratava de acatar a proposta coisa nenhuma, ele não ia jogar por conta do pé. Foram à sua casa, no Cristo, bairro vizinho, para a tarde de dominó.

Lá pela quarta partida, nada de oferecer água, mas o clima estava ameno, sede pouca, ninguém lembrava mesmo. Adalberto foi na cozinha, trouxe um pote grande e quatro colheres. 

— Agora vejam se vocês já provaram doce de leite melhor do que esse. Duvido! Aqui painho trouxe de Catolé do Rocha, de um senhor que tem uma queijeira e faz o doce só para a família. Provem aí! — E entregou as colheres.

Os amigos refastelaram-se no doce. Estava realmente delicioso, naquela textura que parece ter areia dentro. Ao final do pote inteiro, exibiam sorrisos escancarados, tamanha a felicidade proporcionada por uma iguaria do Sertão da Paraíba. Um deles se dirige a Adalberto e pede, inocentemente: — Pega uma água, Betão!

Ele prontamente responde: — Água? Tem não, boy. 

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 01 de abril de 2022.