por Felipe Gesteira*
Todo menino pobre que se aventura no mundo futebol profissional sonha em se tornar um Ronaldinho ou um Neymar. Quase todo jogador em começo de carreira quer alcançar todos os benefícios que vêm junto ao sucesso de uma trajetória vitoriosa. Contratos com grandes clubes, vitórias, conquistas pessoais, títulos. Mas para quem vem lá de baixo mesmo, o básico também é sonho: ter todos os dias o que comer e onde dormir.
Parece distante alcançar o conceito de “todos os dias” para quem vive a vida no limite da sobrevivência, ou abstrato demais para quem nunca passou pela indefinição do não ter. No limite, o desafio está em garantir um teto para aquela noite e o que comer no dia seguinte, e assim, de modo subsequente, todos os dias.
João Neto vive no limite.
Criado até então somente pela mãe, o adolescente foi chamado para jogar nas categorias de base do maior clube da cidade, o Botafogo. O salário mínimo ajudava a cobrir as despesas com remédios para a sua mãe, autônoma, agora afastada do trabalho por motivo de doença reumática e sem qualquer cobertura porque, como a maioria dos brasileiros autônomos, nunca contribuiu com a Previdência Social.
E como um salário não sustenta uma casa, quem segurava o tranco mesmo era o tio, que agora os acolhia. Feira, água, luz, até internet para produzir conteúdo que gerasse engajamento ao futuro jogador. João Neto era o investimento daquela família.
O tio também era autônomo, vendia cuscuz bondade na feira de Jaguaribe. Todas as manhãs saía de casa para batalhar o sustento do dia seguinte e garantir a tranquilidade para que João Neto se preocupasse apenas em estudar e jogar bola, pois é justamente a necessidade financeira que tira de rota muitos talentos antes que eles possam se desenvolver.
Mas sossego era uma coisa que o jovem João desconhecia. Ele ouvia as conversas entre a mãe e o tio. Saber das dificuldades para comprar comida, do aluguel atrasado, ou mesmo de quando se deixava de comprar a carne do almoço para reservar o dinheiro de sua passagem eram coisas que lhe consumiam.
Apesar das dificuldades, João era feliz naquela casa. Morava num quarto com sua mãe, e cada retrato, cada pedaço lhe traziam uma memória afetiva de sua infância, dos avós que não estavam mais presentes e de todo o percurso para chegar até onde chegou, o que para toda a família era o início do sonho.
João achava que ali estaria seguro, até que o tio se casou. Em dois anos sua vida virou do avesso depois que a esposa do tio engravidou. Ali, ele e sua mãe não cabiam mais. Não tinham para onde ir, sequer como pagar um aluguel. A mãe foi para o interior, morar na casa de uma prima, enquanto João passou a dormir nas dependências do clube e mandava o dinheiro dos remédios até que conseguisse organizar novamente sua vida financeira.
Antes da ambição do sonho pela fama, o jogador queria mesmo era a segurança de saber que não lhe faltaria comida no mês seguinte e que poderia dormir sob o mesmo teto ao longo de um ano, sem o risco de ser despejado. Um ano, um mês, parece pouco, mas não quando se pensa em casa e comida. E toda vez que amarrava suas chuteiras, era na casa que daria à mãe que João concentrava seus esforços. O aquecimento, os passes, os chutes a gol, em tudo o menino projetava a esperança por dias melhores.
A carreira de João Neto não deslanchou. Ficou longe das grandes ligas europeias, de países menos conhecidos, e até dos clubes maiores do Brasil. Como a grande maioria dos atletas, acabou no miolo. Falta de esforço? Jamais. Faltou sorte, olheiro, empresário, dedo de Deus, o que fosse, mas dedicação teve de sobra. O menino, agora homem, circulava entre clubes menos conhecidos do Norte e Nordeste, compondo elencos para os campeonatos estaduais, com bons salários no começo dos anos, e guardando a sobra para depois. No fim da carreira, viraria autônomo, pois não ganhava para fazer um pé de meia. Ao menos João conseguiu alugar uma casa e trazer sua mãe de volta, garantir o sustento e a tranquilidade. Os móveis, as fotos nas paredes, era tudo simples, tudo novo, mas ali, nessa nova vida, o menino-homem descobriu que a casa, aquele lugar de acolhimento, o útero compartilhado entre paredes materiais e imateriais, era feita por eles dois juntos, e estaria com eles para onde fossem. A casa existe onde o amor está.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 18 de fevereiro de 2022.