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O véio que rasga a bola

publicado: 17/02/2023 00h00, última modificação: 17/02/2023 09h42

tags: esportes , opinião , felipe gesteira

por Felipe Gesteira*

Roberto não sabia explicar de onde vinha tanto ranço por jogo de bola. Na infância ele sonhou ser jogador de futebol. Um sonho breve, é verdade, pois seu pai o pôs para dentro nas poucas vezes que ele tentou se aventurar com os demais meninos da rua no campinho poeirão, que ficava na frente de sua casa. Ele se limitou a olhar as disputas de travinha pela janela da sala e torcer pelos amigos. Roberto torcia durante as partidas que não valiam coisa alguma como quem assiste a uma final de campeonato. Vibrava, segurava na grade como se esta fosse um alambrado. Era pleno com o que lhe restava.

– Era só o que faltava, agora virar torcedor. Não sabe que torcer é coisa de vagabundo? Você tem é que estudar pra passar em Direito e ter algum futuro! – dizia o pai, ríspido como só ele sabia ser.
– Mas pai, eu nem tou jogando, e as tarefas da escola eu terminei – argumentava o menino.
– Num quero saber de vadiagem de torcedor, e avise a seus amigos que se a bola cair aqui dentro do quintal, eu rasgo!

A ameaça não parecia ser da boca para fora. Apesar de nunca ter feito nada semelhante, o menino acreditou que o pai seria sim capaz de tal feito, porém não teve coragem de alertar os amigos. Já era grande a vergonha por não poder mais jogar. Ele sequer dizia a verdade, alegava uma suposta unha encravada, escondida por um curativo feito de mentira toda vez que conseguia liberação para sair na rua.

Na primeira vez que a bola executou a trajetória em forma de parábola e passou sobre o muro da casa, o rosto do pai de Roberto se abriu em um sorriso vil. Era o êxtase da maldade que se avizinhava sob a expectativa do choro coletivo de crianças que ficariam privadas de sua diversão.

Roberto seguiu seu destino como o pai rudemente projetou. Se formou em Direito. Ao longo de sua carreira, teve diversas oportunidades de atuar em defesa de quem ama o futebol, mas escolheu o caminho contrário. De tanto absorver as violências praticadas pelo pai, tornou-se um homem sádico, que se vangloriava em reproduzir as falas do genitor como se fossem um manual para o sucesso da falsa meritocracia que ele acreditava ser fruto, quando na verdade era resultado de uma série de privilégios sociais e de classe. Em vez de romper o ciclo, defendendo torcedores, os perseguiu, ampliando em escala muito maior o mal que seu pai conseguia causar.

Casou, teve filhos, sucesso na profissão e uma vida financeira equilibrada. Tinha o retrato da família de margarina para exibir. Não ser querido socialmente lhe afetava pouco, intimamente quase nada, mas respingava quando seus filhos adultos questionavam o motivo de ser tão ardiloso. Ele ria, respondia com piadas infames, citava o pai e ampliava ainda mais os abismos afetivos criados com os seus devido à obsessão em perseguir a alegria dos outros.

Após uma carreira apontada como próspera, Roberto havia sido deixado pela esposa, não recebia telefonemas dos filhos a não ser em datas comemorativas, e aguardava a chegada de sua aposentadoria. Seu último dia de trabalho foi celebrado na cidade inteira. Era a festa de um povo que finalmente se livrava de um algoz. Ele achava graça daquilo, e por tudo o que lhe acusavam de perseguição, ele recebia como elogio.

Na nova fase, livre da obrigação de trabalhar e deixado por quem ele mais amou, Roberto convivia com a solidão de uma forma triste. Olhava para trás e não conseguia enxergar suas práticas como maldosas. Lamentava que o pai não tivesse sido carinhoso, lamentava mais ainda ter reproduzido com seus filhos a criação seca que o pai lhe dera, apesar de ainda assim acreditar ser a correta. Isolado na casa onde foi morar para fugir da selva de pedra que se tornou a cidade, o rangido da cadeira de balanço é interrompido por um estrondo na porta da frente. Ele não acredita no que imagina ser. Era um barulho que resgatava memórias da infância. Ao se dirigir até o quintal, lá estava a bola. Era uma típica canarinho, chamada também de dente de leite, suja de terra, encostada ao pé do muro.

Roberto tinha a oportunidade de trocar o sofrimento alheio pela satisfação em fazer o bem. Ao ouvir o bater de palmas como estampidos, a primeira coisa que lhe veio foi procurar em qual das gavetas do armário da cozinha estavam guardadas as facas.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 17 de fevereiro de 2023.