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O zagueiro gentil

publicado: 06/05/2021 08h00, última modificação: 03/06/2022 11h53

por Felipe Gesteira*

Raul não conseguiu dormir na véspera da final do campeonato contra o Sousa. Seria um desastre incalculável se seu time, o Campinense, o maior da Paraíba, campeão do Nordeste e tudo o mais, tombasse diante da equipe do Sertão, que vinha sendo a sensação do estadual. Raposa e Dinossauro estavam prontos para se enfrentar num dia de domingo, em Campina Grande. Perder em casa tornaria a tragédia ainda maior. 

Não por perder para o Sousa, que há tempos é a terceira força do estado. A questão é que especificamente naquele ano o Dino estava muito mal das pernas. Cotado no começo como um azarão. Do outro lado, o Campinense era o mais badalado, com calendário cheio até o fim do ano para as competições nacionais. Para dar conta, jogou o estadual quase todo com o time reserva, aproveitando os garotos da base, e ainda assim deu show de consistência. Teve a melhor defesa do campeonato, parte disso graças ao zagueiro Raul, que de tão eficiente, foi mantido na equipe principal para a etapa final. 

O grande diferencial de Raul era a técnica peculiar de evitar ao máximo tocar nos adversários. O jovem de 17 anos alçado ao time profissional por vezes era comparado a grandes monstros do futebol, como o eterno Paolo Maldini, do Milan e da seleção italiana. Quando o defensor do Campinense corria para o abate, sua precisão era como a de uma ave de rapina. A torcida enlouquecia, diziam que ele era um caçador, a própria raposa em campo. Raul ia apenas na bola, de carrinho, roubava e terminava a jogada estando ele e seu adversário de pé, porém ele retomando o ataque e o adversário com a maior das caras de tonto. 

O problema de Raul era a motivação. Tinha dó dos oponentes num nível de preocupação que só um pai tem por um filho. Raul era pacifista ao extremo e criou na sua técnica de defensor um tipo de ‘contenção suave’. Era quase um lutador de aikidô, só que no campo de futebol. De tão preciso, era pouco cobrado. Porém, por mais que tivesse livrado seu time por mais de 20 vezes em jogadas nas quais seu erro resultaria em deixar o atacante adversário sozinho de cara pro gol, Raul não era perfeito. E assim, por uma ou outra falha, era sempre lembrado.

O treinador percebia que a técnica elevada compensava a particularidade e não comprava briga. Armava a defesa de um jeito que Raul fosse bem aproveitado e, caso falhasse, um brucutu mais lento e violento chegaria depois para resolver no empurrão. Dessa forma Raul jogava de todo jeito, desde volante, terceiro zagueiro, até na lateral, mas nunca como defensor principal, apesar de ser o melhor do elenco. 

E o grande desafio daquela partida era que Messinho, como era chamado o craque da base do Sousa, que carregou o time nas costas até a final. O menino havia recebido esse apelido exatamente pela semelhança de sua técnica à forma como o famoso argentino joga, com a bola sempre colada nos pés. Não seria nada impossível para um bom zagueiro, visto que a técnica do meia do time sertanejo em driblar nem se compara à do ídolo do Barcelona e da seleção argentina, porém tirar a bola de quem está com ela tão junto ao corpo sem derrubar seria um desafio e tanto para Raul. Naquele dia, para completar, caiu um temporal em Campina Grande. Forte para deixar o gramado alagado, mas não o suficiente para suspender a partida. 

Passado o primeiro tempo, Messinho havia vencido a disputa contra Raul em todas as oportunidades. Todas. O feito adversário foi motivo de forte cobrança no vestiário. Os companheiros pediram a substituição, mas o treinador segurou a revelação da defesa do Campinense. 

Logo na primeira disputa de bola vencida por Messinho sobre Raul, no segundo tempo da partida, seu companheiro de zaga não aguentou e foi tirar satisfação:

— Derruba esse moleque, tu é a mãe dele, é? — questionou o mais velho.

— E o menino vai cair numa lama dessa? Vai sujar a camisa toda — respondeu Raul, com olhar de pena para o menino franzino. 

A resposta inesperada elevou a indignação do colega a ponto de que ele desferisse um soco em Raul. O juiz viu como briga e expulsou logo os dois, sem conversa. Com a vantagem, deu Sousa campeão. E Raul, de cara inchada, foi pedir ao final da partida a camisa de Messinho, ainda limpa, apesar de tanta chuva. 

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 6 de maio de 2022.